Brasil, Rio de Janeiro, Hospital Tavares de Souza, ano de 2333.
ACORDEI SUADO, transtornado por um pesadelo. Recordei detalhes do sonho: uma criança sorrindo sendo rodopiada, um crucifixo de vidro caindo e se despedaçando no chão, um mar revolto com um pequeno barco em meio à enormes ondas, um tubo de ensaio com sangue espatifando-se em uma parede, vândalos quebrando um laboratório de química, a boca de um homem pronunciando a frase "o certo vira o errado, o errado vira o certo" e o rosto de um velho preto, com tantas rugas que gerava espanto e respeito, além de olhos encovados de um azul intenso, como os meus. Olhos azuis em pele preta, uma mistura peculiar que em um brasileiro possui muitos significados. O que meu inconsciente queria dizer?
Haveria ali alguma pista sobre mim, sobre minha história? Sentia como se houvesse uma pressão em meu peito, tive a sensação que o teto cairia sobre mim. Uma voz surgiu em minha mente.
— Desculpe a ligação, senhor, mas uma pessoa está pedindo para te visitar. Posso deixar subir? — disse a recepcionista do hospital.
— Quem é?
— Diz ser um amigo seu.
— Ok.
Fiquei intrigado. Seria alguém com respostas? Com minhas cotidianas dificuldades levantei-me da cama e cambaleando fui até o banheiro. Acionei a torneira com um sussurro e enxaguei meu rosto. De frente para o espelho observei meu semblante, detalhes de minha pele parda e dos meus contrastantes olhos azuis, tão parecidos com os do velho do sonho. Ouvi a porta do quarto se abrir e, da fresta da porta do banheiro, vi um vulto adentrando o quarto, alguém em uma cadeira flutuante. Saí curioso do banheiro e tive uma visão aterradora. Desmaiei.
O ser que ficou diante de mim, naquela cadeira flutuante, era o mesmo velho do sonho, de pele preta e enrugada e com aqueles mesmos olhos implacavelmente azuis.
Minhas pálpebras se ergueram cansadas e lá estava Julia me observando. Ela resplandecia de alegria. Estava atordoado, mas me lembrava do acontecido. Meus braços estavam ligados a mangueiras que traziam soro e medicamentos para minhas veias.
— Doutora Julia?
— Eu mesma — disse ela parecendo um anjo.
— O que aconteceu? Quem era o velho?
— Não sei que pesadelo você teve, mas ele fez você ficar desacordado um bom tempo, chegamos a ficar preocupados.
Ficou certo que tive um sonho dentro de outro sonho. Tudo tão real que me levou a um desmaio. Apesar disso eu tinha certeza de que já havia me encontrado com aquele ancião.
Expliquei minhas preocupações para o doutor Felipe. Ele me garantiu que ninguém me visitou. Chegou a me mostrar as gravações holográficas do sistema de segurança, onde nada pude ver fora do normal, nenhuma pessoa incomum pelos corredores.
Percebi que estava recuperado de meus males físicos quando pude me exercitar de forma intensa. No hospital havia um centro esportivo com vários jogos e esportes que eu desconhecia. Os mais utilizados eram os videogames holográficos que simulavam o jogo de bocha, tênis, basquete e vôlei entre outros.
Eu adorava jogos reais como o biribol, uma espécie de vôlei que se joga em piscinas, esporte originalmente brasileiro. O esporte em que descobri habilidades extraordinárias foi o arco e flecha a raio laser. O arco gerava um feixe luminoso, lembrava os sabres de luz de Star Wars, quis de imediato usar aquilo. Eu acertava os alvos simulados em hologramas estando a mais de duzentos metros de distância. Acreditava que eu podia ter sido um arqueiro profissional.
Tocava na corda virtual, sentia a vibração dela, a flecha laser surgia, mirava com os braços firmes, sentindo a madeira do arco como parte das minhas mãos, assim que o corpo ficava estabilizado eu a liberava. Naquele dia ela voou sem nenhum trepidar, numa parábola perfeita, atingindo o holograma de uma abóbora que explodiu.
Bati meu recorde, sorri satisfeito. Então, percebi o paciente da cicatriz no rosto, Scarface, logo ali. Olhando-me. Um homem com o qual trocava apenas cumprimentos e trivialidades. Estava nítido que ele sabia algo sobre mim, mas eu não sabia como perguntar, como me aproximar dele. A falta de lembranças leva a uma certa covardia, pelo menos no meu caso isso aconteceu.
Parecia-me uma pessoa reservada, algo no olhar dele era assustador. Era um homem alto, de postura reta, como a de um militar.
— Scarface, acho que estou me dando bem nisso, bati meu recorde — falei tentando puxar assunto.
— Para quem andava como um bebê você evoluiu muito, Oco.
A conversa cessou e Scarface continuou a me observar, estático. Preparei meu arco para a próxima flechada, senti as mãos tremularem. Ele me interrompeu com a voz apressada, tentando esconder o nervosismo.
— Precisamos conversar. Acho que você deve saber algumas coisas. Parar de ficar voando por aí.
Abaixei o arco e olhei compenetrado para o homem da cicatriz.
— Saber o quê? — falei controlando meu arfar.
— Vou te dar um bizu. Sei que você acha que eu te conheci aqui no hospital e que eu sou um mero paciente, mas agora que você parece ter se recuperado é o melhor momento para te dizer meu segredo.
— Espero que isso não seja uma piada.
Cruzamos olhares, havia tensão no ar. Fiquei receoso de sofrer um infarto.
— Vamos até a varanda que é mais seguro — disse Scarface sobriamente.
Caminhamos e os funcionários do hospital observavam atentos nossa interação. Da varanda se tinha uma vista encantadora da cidade do Rio de Janeiro. Uma imensidão de floresta atlântica, seguida de uma grandiosa praia e no fim do horizonte a silhueta da cidade com seus enormes prédios, turbinas eólicas e painéis solares em enormes torres. Lado a lado observamos a paisagem. Após alguns instantes Scarface pegou em meu braço e com um olhar preocupado continuou a conversa.
— Oco, esta cidade, antes de ser essa maravilha, antes de o Brasil ser essa potência mundial, tivemos muita violência, muita insensatez de nossos governantes e do povo — parou bruscamente de falar, e antes de continuar me olhou com tristeza passando a mão na cicatriz. — O Brasil, por incrível que pareça, teve uma transformação da água para o vinho por incríveis acontecimentos. O mundo foi transformado, hoje tudo é bom aqui, as pessoas são melhores e as intenções são altruístas.
— Já me disseram isso, mas não consigo me lembrar de nada dessa transformação. Sei que lá no fundo eu sei de tudo que aconteceu, mas não sei explicar.
— Você não tem ideia do que você é capaz — falou demonstrando um discreto tique nervoso no olho em que a cicatriz passava perto.
— Como assim? Você sabe algo sobre mim? — falei com a voz embargada.
— Sei te dizer o que tem de fazer pra descobrir sua verdade.
— Que insanidade é essa?
— Podemos dizer que você está em meus sonhos e eles me dizem o que você deve fazer — cochichou de forma quase inaudível.
— E o que eu tenho de fazer?
— Pegar sua filha e fugir daqui. Vá atrás das pessoas do passado. Sua filha terá as informações necessárias.
— Que filha? Droga! Você não bate bem mesmo — minha voz soou alta, quase um grito.
Um olhar raivoso se instalou no semblante do cicatrizado. Fomos interrompidos por um enfermeiro que o chamou para tomar uma medicação. Ele se retirou baixando a cabeça, pareceu me reverenciar. Fiquei ali refletindo se teria algo de lúcido no que ele dizia. Pelo que sabia ele estava ali por algum transtorno psicológico.
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Uma Encomenda para um Novo Mundo
Science FictionTomás acorda de um coma em uma época à frente de seu tempo e descobre em 2333 um mundo renovado: o Brasil se tornou um país admirável e as pessoas são educadas e altruístas. Atormentado por memórias desconexas, ele desvenda seus vínculos e segredos...