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Retornei ao início da vida quando te conheci e precisei reescrever toda minha história sobre o amor. Acredito que a vida me decidiu dar trégua quando decidiu te encaixar na minha rotina, na rapidez de um sopro você se tornou a parte mais importante dos meus dias e o responsável por cativar a felicidade em mim. Durante os anos antes da sua chegada, a dormência e o silêncio dos dias infelizes eram os responsáveis por ocuparem minha existência que eu acreditava precisar de paz para enfrentar o inverno que me rondava.
Eu não sentia nada. A sensação de ter dormido em cima do braço e acordar com ele dormente era predominante por todo meu corpo, como se eu estivesse em um sono profundo e enterrada em solo úmido e frio. Eu não me reconhecia, não me lembrava da minha própria história e sentia que estava desaparecendo em meio à folhagem.
Você chegou.
Eu não amaldiçoo um momento em que senti dor, porque ela vinha seguida do prazer de sentir a vida pulsar em meu peito. A paz que tanto almejava não me serve mais, pois a calmaria estática e o silêncio que a paz carrega me lembra a morte. Eu já escrevi tanto sobre as vezes que morri, no entanto quando você surgiu eu não esperava renascer. Eu realmente me vi aprendendo o básico como uma menininha ao pronunciar meu nome com clareza, sonhar acordada imaginando cenários e sentindo tudo à flor da pele, que me faziam gargalhar até doer a barriga ou chorar feito criança.
Não é um traço da minha escrita traçar uma linha cronológica dos meus sentimentos, mas para explicar você eu preciso demonstrar o caminho longo que percorri até te encontrar. Todos os que escrevi até agora foram antes de você, e antes de você houve um espaço vazio entre meses em que estive submersa sem enxergar um raio de sol refletir em mim. Antes de você, não havia vida depois de um caminho tortuoso de tantas tentativas falhas de ser amada. Antes de você, era apenas antes e o depois se tornou vida. Como primavera, no fim de agosto a vida voltou aos poucos a florir.
Eu amei você imediatamente.
E você também me amava, em segredo, porque você tinha também o compromisso de amar outra. Mas o amor não impõe bordas limitantes, ele é livre e consegue encontrar brechas para abraçar a liberdade, e é capaz de libertar. Você me libertou do inverno rigoroso e duradouro que me prendia como correntes nos pés.
Não te acuso de infidelidade, dizer que você me amava ao mesmo tempo em que amava outra não afirma que você não tenha sido leal ao seu compromisso. Eu, mais do que ninguém, sei que o amor vai além disso. E você me ensinou que nem sempre preciso preencher as emoções e o vazio com palavras, mesmo que seja meu maior talento. O silêncio se tornou nosso alicerce quando percebemos que não podíamos preencher o espaço entre nós com as palavras que gostaríamos de gritar.
Eu amo você.
E assim, na sutileza de um sopro, eu me encontrei perdidamente encantada por tudo que você representava. A sua presença me mantinha florescendo e eu enxergava a vida com as lentes de uma visão ampla e limpa, os olhos umedeciam com lágrimas de emoção ao encarar a imensidão pela primeira vez depois de anos no escuro da terra úmida. E você me cativava, eu respirava fundo e me dava conta que os pulmões já estavam cheios de ar, as veias cheias de sangue que corriam vida e o coração pulsava mais forte quando eu te encontrava.
E na sutileza de um sopro, você me devolveu a vida. Eu sentia outra vez o sol em meu rosto, sentia a dormência abandonando meu corpo aos poucos e ficando outra vez sensível aos toques da vida que me cercava, a paz e calmaria já não me serviam mais. E na efemeridade que você me fez renascer, você me fez te amar e enquanto eu provava outra vez o sabor agridoce da vida imaginando o seu sabor, você se foi. Eu não chorei mesmo que me rasgasse de dor e me alegrei com meu sofrimento, porque isso significava que eu ainda estava viva.
Eu amo a vida.
Você me deixou viva, diferente de todos que vieram antes. E no final, mesmo sem preenchermos o espaço entre nós com palavras que gostaríamos de gritar, ainda existia amor em nossa língua. Te reencontrei e meus passos falharam antes de chegar ao seu encontro, e felizmente em seu abraço pude encontrar descanso. Diferente dos que vieram antes de você, não nos tornamos um só ao ponto de que eu me perdesse quando você fosse embora levando metade de nós. Eu não precisei me desmontar para caber em você, portanto estava inteira quando me vi sozinha outra vez. Você me deixou viver. E mesmo continuando a te amar, eu amava ainda mais a vida.
Eu me amo.
E continuo sendo eu.
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quando amei por dois
Poetryquando amei por dois é um conjunto de cartas sobre a pluralidade do amor e a casualidade que se torna cada vez mais desconfortável na vida da personagem Amara, que em seus encontros efêmeros consegue encontrar os sintomas românticos do amor, mesmo q...