8. vermelho

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Em meio ao oceano, tempestades se formaram e em meu barco fiquei à deriva de sua ira. Fui balançada, senti enjôos quando aportei o cais e caminhei pela areia quente que causavam bolhas em meus pés que estavam sendo ralados e machucados pela areia áspera que me fazia sangrar em vermelho vivo. E em meio tanta dor, eu ainda encarava o horizonte alaranjado que refletia na água e sabia que ainda enxergava beleza. 

Quando encaro meus pés em vermelho bordeaux, contemplo minha fragilidade. A linha da vida é tênue ao ponto de ser facilmente ultrapassada quando alguém ignora a nossa humanidade, portanto acredito que enquanto eu era machucada pelo prazer sádico das ondas, elas na verdade não tinham a pretensão de me matar e sim testavam minha vulnerabilidade. 

Um dos meus maiores traços é a minha incapacidade de respeitar meus limites, caminho pelas estradas mais torturantes pela minha ausência de autoamor e me amando tão pouco me coloco em situações nas quais talvez nunca saia viva. Já perdi tantas vidas por permitir entregá-las em mãos irresponsáveis, principalmente as minhas. Ainda caminhando lentamente pela areia que ferve ao sol do meio-dia sinto minhas costas arderem com a violência dos raios solares, próximo ao meu barco enxergo as ondas trazerem uma garrafa de vidro transparente com uma folha desgastada e corri para buscá-la pois sabia que eu era a destinatária.

Antes de ser exilada e me encontrar em tamanha miséria, nosso início foi tão belo como qualquer outro encontro de amantes. Eu te avistei de longe e sabia que sua aura resplandecia de encontro ao meu espírito e que você também havia me visto, como se ímãs houvessem se atraído. Eu não soube seu nome por sua boca, minha curiosidade fez com que eu descobrisse sozinha quem você era e que por obra do acaso havia um elo que trazia a possibilidade de nos unir. A única possibilidade foi o suficiente para que as chances fossem apostadas e eu pude te conhecer e descobrir que você também me procurava. Talvez sua beleza tenha me cegado de certa forma, porque eu não enxergava nitidamente seus defeitos e sua crueldade mesmo que dissessem que estar ali não fosse seguro, mesmo que sentisse uma parte de mim morrer todas às vezes que me submeti aos seus caprichos e mesmo que ficasse alheia dos meus prazeres. Eu me acostumei com os joelhos machucados de tanto me curvar para receber em troca apenas a sua presença avassaladora. 

Lembro das vezes em que você me evitava por meses e tentava me manter afastada, o que era em vão pois eu me mantinha em sua órbita. Não era necessário que você me dissesse como me portar, porque eu já previa e realizava sem questionar para que você me amasse de volta. Eu vivia como Plutão, pequena, recusada e repelida no limite das bordas e mesmo assim girava em torno de você, agia conforme seus gostos e esperava que você aparecesse repentinamente como da primeira vez. 

E um dia você apareceu enquanto eu esperava o momento de ir para casa. Seu rosto estava diferente, mais bonito que a última vez que havíamos nos visto e também muito surpreso em me encarar outra vez. Eu usava um vestido vermelho e você não deixou de reparar o quão bem ele caiu em mim, talvez nesse momento você tenha esquecido o quão nocivo foi nosso primeiro contato e eu não me importava caso tivesse esquecido, porque para mim aquele seria nosso primeiro encontro. No dia seguinte, escolhi uma saia de veludo vermelha para te encontrar e fazer as coisas darem certo como eu sempre quis. Porém, talvez um dia tenha sido o suficiente para você se lembrar o porquê me afastou das formas mais cruéis possíveis e decidiu que não me trataria com piedade. Eu odiava encarar minha imagem no espelho, mas nesse dia tentei me olhar para que pudesse me arrumar e você me visse de outra maneira. E você pode até ter visto, mas continuou odiando quem estava na sua frente. E assim você me repeliu para o mais longe possível de você, me colocou em um barco sozinha dentro da imensidão do oceano e me mantive entre nuvens e ventos tempestuosos que tentavam me afogar conforme suas ordens. 

E assim cheguei até aqui. 

Encontrar a garrafa foi o suficiente para que as lágrimas surgissem em meus olhos, porque antes que eu pensasse em ler sua mensagem as minhas memórias me alertavam que de suas palavras eu teria que me proteger. Ao pegar o papel fino, cortei o dedo indicador que sangrava e ardia com a areia que se misturava na ferida, lavei na água salgada do mar enquanto tentava abafar um gemido de dor com os lábios cerrados. Eu não sofria pelo corte, mas de saber que até o papel de sua carta era capaz de me ferir. 

Desisti de ler o que você dizia e joguei os pedaços na água, que dissolvia e afastava as folhas junto com a maré. Meu primeiro ato de autoamor era não ler as palavras de quem nunca me amou. 

quando amei por doisOnde histórias criam vida. Descubra agora