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A amizade é o lugar onde amamos pela primeira vez pessoas que não possuem laços sanguíneos conosco. Quando éramos crianças, subíamos em árvores, dividíamos os lanches e corríamos um atrás do outro no pega-pega sem imaginar que um dia ainda estaríamos seguindo as sombras um do outro quando fôssemos maiores.
A infância foi um campo aberto onde criamos nossas primeiras lembranças e a amizade foi a semente que plantamos inconscientemente. Costumávamos brincar a tarde toda e isso era mais do que suficiente para nós, que deixávamos até de comer ou beber para termos mais horas de diversão. Também nos machucávamos muito, andávamos sempre com os joelhos ralados e alguns arranhões pelo corpo enquanto corríamos livremente pela vizinhança. Alguns dos machucados talvez fossem pela nossa imprudência em relação ao outro, mas pedíamos desculpas e tudo ficava bem outra vez como se o sangue parasse de jorrar após a palavra mágica ser proclamada.
E conforme a semente crescia, nós crescíamos também. As brincadeiras mudaram, nossos assuntos também e fazer carinho no seu cabelo já possuía outro significado. Eu percebi que você estava crescendo e que o olhar que me lançava já não era o mesmo de antes, talvez no meio desse crescimento tenha nascido um fruto maior do que esperávamos. Eu percebi que as emoções que você me provocava já não eram simples de entender, mas ainda era simples estar ao seu lado conversando sobre coisas vãs. A simplicidade de ser sua amiga nunca nos deixou.
Você esteve de perto quando eu me apaixonei pela primeira vez, assistiu eu me afastar sem dizer que aquilo de alguma forma havia te magoado e eu entendo que talvez tenha sido mais confuso o desconforto que sentia do que me ver desaparecer aos poucos. É inevitável mudar depois de amar alguém e não foi diferente para mim, mas você ainda era você e no fundo eu ainda era eu em algum lugar dentro da minha costura remendada. Um amigo te conhece inteiramente e consegue mapear suas qualidades e defeitos, ele é capaz de fazer com que a gente se lembre de quem a gente é. Quando eu não me reconhecia mais, você colocou um espelho em minha frente e me contou nas entrelinhas sobre quem eu era.
Existem coisas que acontecem sem que a gente perceba o momento inicial delas e em alguma hora nos olhamos minuciosamente e percebemos que algo está mudado. Eu soube que não era o mesmo quando olhei o fundo dos seus olhos verdes e notei que sentia saudade mesmo quando você nem tinha ido embora. Quando me dei conta nossa amizade já tinha cores que antes não possuía. Eu e você nos conhecemos como a palma da mão, te enxerguei em diversas faces, cores, fases e tenho certeza de que te reconheceria até no escuro.
Como todo amor que recebi, fui covarde em não aceitar o seu. Vivemos uma sequência de acontecimentos que nos levaram a nos machucarmos tanto ao ponto de estar próximo ser sinônimo de estar em perigo. Eu fugia do real e deixava você no vazio da dúvida o tempo inteiro. Você encontrou alguém e por muitos momentos eu me perguntei em que momento havíamos deixado de sermos nós, mas já era tarde. Já éramos outra versão de nós mesmos e que agiam como duas peças de um quebra-cabeça que não se encaixavam mais e toda vez que insistíamos aproximação nos machucávamos outra vez. Talvez ainda tenhamos sido as crianças que costumavam machucar um ao outro sabendo que um pedido de desculpas iria manter as coisas bem e você procurava perdão pelos mesmos erros mesmo sabendo que iria cometê-los novamente, enquanto eu me sentia cada vez mais vulnerável quando estava em sua presença.
Mas eu ainda era eu e você no fundo ainda era você, em algum lugar da sua costura remendada. E como sua amiga, enxerguei quem você sempre foi e coloquei um espelho em sua frente para que você se reconhecesse. Eu disse que eu consigo te enxergar no escuro.
Como tudo na natureza, estamos em um ciclo de vida-morte-vida que é um processo de reinvenção e renascimento que se retroalimenta, sendo capaz de recriar tudo. A semente que plantamos no início cresceu, nos ofereceu os diversos frutos de todas as estações e quando pensamos que essa árvore não sobreviveria ao inverno, a primavera nos trouxe novas folhas e frutos. A nossa árvore foi regada com sangue, suor e lágrimas e se mantém forte em meio aos períodos de seca ou inundação. O nosso amor se reinventa.
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quando amei por dois
Poesiaquando amei por dois é um conjunto de cartas sobre a pluralidade do amor e a casualidade que se torna cada vez mais desconfortável na vida da personagem Amara, que em seus encontros efêmeros consegue encontrar os sintomas românticos do amor, mesmo q...