A turma se ergueu das cadeiras ao soar do sino que marcava o fim da aula, acompanhada do escrutínio de um Snape surpreso com o nível de disciplina dos sextanistas. Todos interagiram no decorrer das explicações, levantando questionamentos inteligentes e que superavam o nível do ano em que estavam. Apesar da ausência de divisões por casas e, consequentemente, a contagem de pontos que levaria à taça ao fim do ano letivo, os alunos se sentiam compelidos a se esforçarem pelo conhecimento, livre de recompensas materiais.
E não fora tão diferente com as demais turmas daquele dia. Os mais novos até apresentavam certa resistência e hábitos comuns às crianças da outra dimensão, porém a atmosfera pacata os estimulava ao aprendizado. Por consequência, facilitava o trabalho dos professores. O mestre de Poções, agora mestre em Estudo das Artes Obscuras — no lugar de Aerona — mal tivera a chance de admoestar qualquer um dos estudantes.
Se não fosse pela pergunta indiscreta de um sextanista, cujo primo frequentara Hogwarts durante a guerra, Snape teria sido agraciado com uma das aulas mais pacíficas que ministrara em toda a vida acadêmica.
No contrafluxo dos estudantes, Briallen entrou na sala com uma pilha de livros nos braços.
— A Dir.ª Llewellyn pediu que eu trouxesse estas obras para o senhor, professor — explicou, colocando-os sobre a mesa. — Pedi a Duno que os deixasse em seu quarto, mas...
Snape queria distância do atrevido bwbach. A criatura só faltara pular no seu pescoço em processo de cicatrização, quando reclamara da qualidade da manteiga servida no café da manhã.
— Diga a sua mãe que eu mesmo poderia ter ido à biblioteca, caso assim desejasse. Posso não ser fluente em galês, mas mam não é uma palavra de grande complexidade de entendimento — completou ao ver a expressão surpresa da menina.
— Meu espanto não foi por descobrir o óbvio. — Briallen segurou as mãos atrás das costas, soando igual a Aerona. — Não é de se espantar que Duno não deseje sua companhia. Os bwbachod não suportam gente mal-educada. Faça bom proveito dos livros.
Ela marchou para fora e, minutos depois, com os volumes em mãos, Snape também saiu. Apesar do cargo temporário, que assumira como uma forma de alimentar as horas vazias com uma tarefa edificante, o professor evitava o convívio com o corpo docente, a mãe em especial. Até então, a mulher respeitara o espaço figurativamente quilométrico que ele interpusera entre ambos, porém o antigo espião tinha certeza de que Eileen "atacaria" em breve, com mais desculpas.
Enquanto os alunos aproveitavam o intervalo entre a última aula e o jantar, caminhando pelo terreno da escola, Severus andou até o lago cercado por juncos altos, tingindo de entardecer, e sentou-se em um banco de pedra próximo à margem. Ao ajeitar os tomos ao lado, notou pares de olhos saídos da água, contudo, ao se virar, encontrou apenas ondulações na superfície brilhante
Era comum ser acometido por aquela sensação em Hogwarts; de estar sendo observado a todo instante, prestes a ser atacado. Contudo, em boa parte das vezes, tratava-se da neurose típica de um agente duplo. Em Annwn, a paranoia ganhava razão, embora o único ataque sofrido, desde que pusera os pés na escola, tivesse vindo de Duno.
— São as gwragedd annwn, donzelas do lago. — Ele respirou fundo, sem se virar ao escutar a voz da mãe. — Elas ajudam a proteger a escola. Bem, você lerá sobre nos livros.
— E mesmo assim perdeu seu tempo com uma explicação rasa. — Snape encarou uma obra sem título ou autoria, encadernada em couro, ignorando a aproximação de Eileen. — Suas aulas devem ser muito... instrutivas. Deduzo que a diretora não possua padrões altos na hora de contratar os funcionários.
— Pelo caldeirão de Cerridwen, Duno não estava errado ao coalhar seu leite esta manhã.
Eileen parou ao lado do banco, mas não se sentou, encarando para além do lago; com braços relaxados e olhar perdido, era como se enxergasse algo visível apenas a ela. Severus a acompanhou por um instante, mais uma vez com a clara sensação de que alguém o encarava. Não do lago desta vez. Um calafrio se estendeu pela espinha e o professor se recriminou em pensamento pela resposta física ao estímulo vindo do desconhecido, muito semelhante ao que sentira ao ser encarado pela anciã na floresta.
— Como conheceu Aerona? — perguntou enfim, dividido entre a curiosidade relacionada à diretora e o anseio de fugir de uma possível conversa de cunho familiar.
Ao abrir o livro que chamara sua atenção, Snape não viu o sorriso discreto se formar nos lábios da mãe; as folhas amareladas apresentavam uma caligrafia elegante, que muito o lembrou a de Dumbledore. Só na quinta página encontrou o título e o autor... autora: Círculo Entre Mundos: uma Coletânea do Povo Dourado, escrito e traduzido por Aerona Llewellyn.
— A diretora já me conhecia quando eu a encontrei pela primeira vez. Estava perdida não muito longe dali — disse, apontando para a margem oposta do lago. — Aerona e Cerys me socorreram e me trouxeram para cá. Cresci ouvindo de mamãe para ficar longe de qualquer objeto forjado do ferro, mas ela partiu antes de explicar a razão para tal cuidado. Só compreendi plenamente com o auxílio das irmãs Llewellyn. — Eileen o fitou, recebendo um olhar inabalável.
"O ferro é terrível para os Tylwyth Teg e seus descendentes diretos. E se um deles estiver do outro lado e entrar em contato, será transportado de volta a este mundo. Eu não fugi das minhas obrigações com você, fui banida daquela dimensão. Eu..."
— Qual a idade dela? A julgar pela aparência imutável, e a insistência em explicar que o tempo aqui corre diferente, o mesmo conceito se aplica a Aerona.
Snape não queria o melodrama vindo da mãe. Nem uma palavra saída da boca dela o faria acreditar nas justificativas dadas para a partida repentina. Especialmente uma que envolvia Eileen se autoproclamando filha ou neta do povo dourado.
— Não sei precisar. 20, 30, 80, mais de um século. A diretora me parece atemporal. Questione-a se está curioso. — Ele deu um sorriso enviesado. — Você passou por poucas e boas do outro lado, Severus. Cometeu erros irreparáveis e, ainda assim, tentou consertá-los. Infelizmente, o seu mentor o envolveu em diversos joguetes onde a mentira era uma peça tão fundamental, que descartá-la hoje, livre de suas obrigações, tornou-se uma tarefa penosa. — Eileen afastou os livros e sentou-se ao lado do filho, fingindo não se magoar com o afastamento imediato dele. — As pessoas daqui não são assim, não desejam enganá-lo; não têm motivos para isso. Se quer descobrir algo, pergunte.
Quando a mulher se levantou, o Sol já se escondia atrás das árvores; o laranja misturando-se aos tons de azul no horizonte.
— Permita-se um pouco. Aproveite os dias passados aqui e, no final, pergunte a si mesmo se vale a pena chamar o outro lado de lar.
Snape não a observou partir, refletindo sobre o que acabara de descobrir, porém atentou-se aos passos se distanciando rumo ao castelo e amassando as folhas caídas. Ele nunca daria o braço a torcer em voz alta, contudo, o questionamento sobre o outro lado rondava sua mente há muito tempo.
• Notas •
Ora, ora, parece que temos um Snape confuso...
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Hiraeth ϟ Potterverso
FanficA Morte pode ter se mostrado como uma velha amiga ao terceiro irmão Peverell, contudo, para Severus Snape, ela surgiu na forma de uma desconhecida, dentro da Casa dos Gritos, negando-lhe o fim. Carregado a uma dimensão que julgava não passar de um m...