ένας - 𝔦𝔫 𝔱𝔥𝔢 𝔠𝔩𝔬𝔲𝔡𝔰 𝔴𝔥𝔢𝔯𝔢 𝔱𝔥𝔢 𝔞𝔫𝔤𝔢𝔩𝔰 𝔰𝔦𝔫𝔤

1K 105 217
                                    


É impossível manter preso o amor
— Lúcio Apuleio


Afrodite, a mais bela do Olimpo, quase cochilava no divã dourado dos jardins olímpicos. Descansava após um dia de visitas aos seus templos e locais de adoração, entre os quais o Chipre, que foram as praias onde ocorreu seu nascimento. Passeou também por Tebas, Esparta, Delos e Pafos, cidade na qual fora erguido seu mais antigo santuário. Ouvir de seus devotos as graças e orações era lisonjeiro e agradável, mas por vezes algo cansativo.

Quando estava prestes a ceder aos apelos do sono, ouve um leve bater de asas apressadas. De olhos fechados, a deusa sorriu. Sabia que aquele abanar suave anunciava a chegada de Zayn, seu amado filho.

A deusa abriu os olhos e lá estava ele: seu garoto de pele marrom amarelado lembrando-lhe as estátuas forjadas do bronze mais precioso, cabelos escuros e olhos claros, sorrindo para ela.

— Meu filho, tão amado e belo, de onde retornas ?

— Estive por aí, minha mãe. Sobrevoando belas paisagens e distribuindo um pouco de amor nesta terra por vezes tão sombria.

— Flechastes corações desavisados, meu bem?

O pequeno Zayn sorriu. A mãe o conhecia como ninguém.

Zayn trazia em si duas fortes características dos pais: a vocação amorosa herdada da mãe Afrodite e a fúria arrebatadora de seu pai, o deus da guerra Ares. Ficou então conhecido como o deus do amor graças ao seu dom de insuflar nos corações de mortais e imortais os sentimentos amorosos mais profundos e as paixões mais violentas através de suas flechas, as quais utilizava para atingir os alvos de sua bênção, ou de seu castigo. O pequeno tinha sempre ao seu lado a defesa e a proteção da poderosa Afrodite, que amava seu filhote de todo o coração e o defendia como uma verdadeira leoa.

Um dia, porém, Afrodite dividiu com a deusa Métis uma parte de suas angústias enquanto passeavam juntas pelos jardins do palácio.

— Ó, minha cara Métis sabes que trago no peito o mais profundo amor pelo meu filho, não é mesmo?

— Ó sim Afrodite. Não disfarças o olhar iluminado sempre que o pequeno está por perto.

A deusa do amor sorriu ao lembrar-se das bochechas rosadas do filho. E continuou a falar:

— Porém, uma coisa me preocupa profundamente, minha amiga.

— O que te aflige, querida?

— É que Zayn não cresce! Fico a analisá-lo incansavelmente e não noto qualquer mudança em sua aparência que me faça crer que ele se desenvolve! Amo meu filho do jeito exato que ele é, mas sonho com o dia em que ele se tornará um belo homem, talvez o mais belo de todos os deuses! Contudo, quanto mais o tempo passa, mais perco as esperanças e o vejo continuamente estacionado na infância, sem que nada possa fazer para vê-lo crescido.

— Mas há sim algo que podes fazer,  Afrodite.

A bela deusa parou e se virou de frente à amiga, indagando cheia de curiosidade:

— O que? O que eu poderia fazer para ajudá-lo, minha cara?

— Dê a ele um irmão.

Afrodite contraiu a testa.

—  Não compreendo.

— Afrodite, querida, ele é teu único filho. Cedes toda a vossa atenção para ele. E assim, acaba por torná-lo mimado e sempre preso a uma condição que lhe é confortável. Um irmão significaria companhia para Zayn, mas também concorrência! Teu hoje pequeno filho, livre dos teus cuidados exacerbados e desafiado por um concorrente à altura, logo se desenvolveria e deixaria para trás essa eterna e cômoda infância. E ademais, esqueces o mais importante: o amor não cresce na solidão!

A última frase convencera Afrodite de que Métis, deusa da prudência e da astúcia, estava com a razão. Após alguns minutos de reflexão, a mais bela divindade acolheu o conselho da amiga

— Ó Métis seguirei vosso prudente conselho. Darei a Zayn um irmão.

Trocaram um abraço fraternal antes de continuar o passeio agradável.

Algum tempo depois, os deuses davam as boas-vindas aos três novos integrantes do panteão olímpico, gerados por Afrodite e Ares: Pothos, deus alado da paixão ardente; Himeros, deus do desejo sexual; e Anteros, o pequeno deus que viria a ser a antítese do irmão Zayn, pois era o deus da desilusão e do amor não correspondido. Juntos, os quatro seriam mais conhecidos como Erotes, companheiros habituais de Afrodite, que representam as várias facetas do amor. Juntos se tornaram a personificação de sentimentos como a saudade, os ciúmes, a rejeição, a solidão, a carência, a paixão, o desejo. E nenhum ser, mortal ou imortal, era capaz de resistir aos seus poderes.

Com o passar dos dias, como prometido por Métis, os pequenos cresciam, se transformando enfim em quatro belos rapazes. No entanto, dentre eles, Zayn se destacava tanto pela beleza extrema, quanto pelos talentos muito acima dos irmãos. Era ele quem detinha o poder supremo da união e da simpatia entre todos os seres vivos. Era ele que semeava as primeiras afinidades que se transmutariam em grandes amores, fortalecidos muitas vezes pelas flechas de seus irmãos. E Afrodite não podia sentir-se mais feliz e orgulhosa de sua prole.

— Meus amados frutos! Em belos homens se transformaram. Vós sois a razão do meu mais profundo orgulho.

A deusa costumava dizer, sempre que os via juntos. Recebia na fronte os beijos e afagos carinhosos dos rapazes antes que saíssem pelo Universo, provocando nos corações os mais sublimes sentimentos e as mais profundas dores.

Viviam todos em franca harmonia. Sem ressentimento da preferência da mãe pelo irmão mais velho, mas ao contrário, reconheciam que Zayn detinha nas mãos um poder superior. Até mesmo Apolo, o deus solar, do alto de sua excelência, teve o ego curvado pela seta impiedosa do deus do amor.

Todos os dias os irmãos partiam em longas viagens pelo mundo dos mortais para distribuir os contentamentos do amor. Num entardecer, porém, ao regressarem à fabulosa morada dos deuses no topo do Monte Olimpo, encontraram a mãe a caminhar de um lado a outro defronte o próprio trono.

A bela deusa parecia francamente enraivecida.

— Que há, minha mãe? O que te aflige? — perguntou Zayn, seguindo à frente dos irmãos.

—  Digam-me, meus filhos acham-me indigna? — Disse a deusa, não escondendo a contrariedade.

Os quatro se entreolharam, sem entender o que a mãe dizia. Zayn respondeu, prontamente:

—  De forma alguma, mãe. Que questionamento absurdo nos fazes?

Com os olhos marejados de ódio, a deusa se dirigiu a eles, contando o acontecido

— Absurdo? O que há de absurdo nesta pergunta quando estive em todos os meus templos e vi praticamente sumirem as homenagens e oferendas a mim? Por que me faltam os discípulos, sempre tão fiéis e leais? Suponho que tenha me tornado indigna aos olhos deles, não? Sou tratada de tal maneira que na honra de minha majestade tenha que ter parte do meu ser uma parceira, um mortal; que meu nome, formado e posto no céu, tenha-se que profanarem sujeiras terrestres? Tenho eu de sofrer que tenham em cada parte dúvida se tenho eu de ser adorada ou este rapaz que nada se compara ao meu esplendor, este mortal, tem que morrer, como ousam pensar que é superior a mim? Mas quem quer que seja, que roubou e usurpou minha honra, não haverá prazer disso: eu lhe farei que se arrependa disso e de sua ilícita formosura.

Nenhum dos jovens se atrevia a se aproximar, pois conheciam muito bem os arroubos raivosos de Afrodite

Anteros tentou acalmá-la.

— Mãe gloriosa, eis a mais bela e radiosa das deusas, a mais amada e idolatrada de todas! Não possuo a explicação para que seus devotos lhes tenham faltado, mas há, decerto, alguma razão que não o desamor pela vossa divindade.

— Estais certo, Anteros. Há uma razão, certamente.

— E irei descobri-la muito em breve, que não haja dúvidas!

Dizendo isso, a deusa retirou-se abruptamente do recinto. Fazendo com que os quatro respirassem fundo.

Living Proof - ziam -Onde histórias criam vida. Descubra agora