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"Eu amo tudo o que foi

Tudo o que já não é

A dor que já me não dói

A antiga e errônea fé

O ontem que a dor deixou,

O que deixou alegria

Só porque foi, e voou

E hoje é já outro dia."

- Fernando Pessoa



     A primeira vez que senti lábios que não eram os dela encostarem nos meus, comecei a perceber que talvez eu fosse capaz de amar outro alguém. Na quinta vez, comecei a formular a possibilidade de que jamais deixaria de amá-la, ainda que amasse outra pessoa. 

     Na sétima vez, passei a semana seguinte ao ato tentando compreender o principio fundamental da sobreposição quântica na tentativa de explicar o misto de sensações sentidas uma a uma e todas de uma vez a cada encostar de lábios, arrepio na pele e memória evocada do mais profundo baú enterrado na curva do meu hipocampo. Depois desse dia eu entendi que mesmo que deixasse de te amar, eu ainda te amaria.

     Na décima, comprei dois litros de tequila El Jimador Reposado e acordei no outro dia com um fio levando soro a minha veia, uma terrivel enxaqueca e um gosto forte de álcool com baunilha na boca.

     Claro, dez anos de distância não são dez dias e nesse meio tempo eu amei, desamei e até podia jurar que a tinha superado de uma vez por todas. Mas a minha tremedeira e suor frio que começou no momento em que a vi ali, sorrindo e vislumbrando futuro com outra pessoa, só provam que o tempo ameniza tudo mas não apaga nada.


     Assim que o sinal passou do vermelho para o verde, pisei com o máximo de força que podia no acelerador, sem me importar com as buzinas ao redor. Cheguei na fazenda em 15 minutos fazendo um trajeto que duraria pelo menos 30.



     Joguei minhas malas de qualquer jeito no canto do quarto que a Wynonna tinha preparado pra mim e corri para o banheiro como se a água do chuveiro fosse a cura para todos os males do mundo. Como se a água fosse lavar todas as memórias do toque da pele dela encostando na minha. Tola. Nem se eu tirasse o cérebro do crânio e o deixasse imerso por horas num tanque com água e sabão eu conseguiria te apagar.

     Após o banho, que não deve ter durado menos que duas horas, desci até a cozinha e preparei um lanche rápido. Exausta, mas com medo de fechar os olhos e encontrar no escuro as cenas vivenciadas mais cedo, sentei no sofá da sala e liguei a televisão na esperança de calar o ruído interno com os sons que dela saiam.

      Pisquei algumas vezes os olhos, horas mais tarde, na tentativa de amenizar a claridade da luz solar que encandeava minha visão. Havia adormecido ali mesmo, em meio a suspiros e notícias de tragédias anunciadas em algum jornal noturno. Olho para o antigo relógio na parede, que está marcando seis e meia da manhã.

      Minutos depois de levantar e seguir para a cozinha escuto o barulho de chave encaixando na fechadura.

Metade de mimOnde histórias criam vida. Descubra agora