O que Ficou para Trás

178 37 173
                                    

Você é uma daquelas pessoas que têm medo de entrar em avião?

Bem, eu sou.

Na verdade já entrei em muitos aviões e voei para muitos lugares. Meu trabalho exigia isso. Eu era engenheiro de uma empresa grande, com fábricas em diversos países. Mesmo assim, para mim era um grande ato de bravura toda vez que subia as escadas e passava pela porta de um avião. Quando as turbinas começavam a girar, meu Deus, o coração batia mais rápido e o corpo todo começava a suar, não dava pra sentir as pernas direito e eu segurava firme nos dois braços do assento.

É claro que naquela época eu não fazia a mínima ideia de como é a bravura de verdade; mas eu estava certo em uma coisa: Daquela vez, o avião ia mesmo cair.

Será que as coisas estão fadadas a se repetir? Meus pais também sofreram um acidente de avião. Foi quando eles morreram.

Enquanto olhava pela janela para o mar de nuvens ligeiramente abaixo de nós, meu reflexo translúcido no vidro, eu refletia no que tinha ficado para trás:

Uma casa grande num bairro nobre de São Paulo, Pinheiros; Nenhuma esposa, nenhum filho, mas uma família: o vô, pai do meu pai - Um coroa muito gente boa, gentil, piadista, em seus últimos anos. Já precisava muito da minha ajuda até para coisas simples, como tomar banho.

Ele era a única família que me restava, e era uma fonte constante de pérolas de sabedoria para mim. Minha bússola moral.

Na semana passada, ele estava sentado de frente para a janela de seu quarto, olhando para as estrelas, como gostava de fazer. Eram oito horas e pouco da noite. No silêncio noturno, ele ouviu a porta da frente abrir e bater. Era eu chegando em casa.

- Cheguei, vô! - falei alto, já deixando minha mochilona ao lado da porta e subindo as escadas, indo até o quarto dele.

Acendi a luz.

- Essa luz na minha cara! - ele resmungou.

- Desculpe, desculpe.

- Sem sutileza nenhuma. Se fosse um elefante entrando em casa não seria pior!

- Desculpe. Eu fui num bar com a Clara e o Paulo, por isso demorei um pouco. Mas já estou indo fazer a janta.

- Não precisava se apressar por minha causa. - Ele se virou para mim, mudando o tom. Odiava sentir que era um peso nas minhas costas.

- Não por você. Aquilo lá estava um tédio mesmo.

Eu fui para o meu quarto, em outro canto do andar de cima.

- É mesmo? E o que é que estava "rolando" por lá?

Eu ri, de volta ao quarto dele, descalço e sem o cinto.

- É engraçado quando você tenta ser descolado e usa essas expressões de 1965.

Ele me fitou com os olhos castanhos, como os meus, mas que já perdiam um pouco a cor; os óculos fundo de garrafa, comuns às pessoas que costumam ler muito (ou costumavam); e as rugas, centenas delas, que olhavam para você sempre que ele falava contigo. Ele era como um bichinho de pelúcia idoso e de óculos.

- Pois saiba que tudo de bom que existe na sua geração foi inventado na minha!

- Eu concordo com isso. Vem. Vou te ajudar a ir para a sala, aí você me espera lá enquanto tomo banho.

- Eu posso ir até lá sozinho, Davi. - respondeu, já se levantando, com aquela dificuldade habitual das pessoas idosas.

A propósito, meu nome é Davi. Davi Martins.

As Crônicas das Muitas Terras - Um Novo Horizonte        (#letrasdouradas) Onde histórias criam vida. Descubra agora