01 - As Flores de Pétalas Laranjas

49 8 10
                                    

Antes

Eram tempos difíceis, de muita briga e pouco amor. Eram tempos nos quais coisas terríveis aconteciam e ninguém conseguia achar um motivo. O povo da Vila de Prudenta sentia-se abandonado e sozinho, mesmo aqueles que não falavam sobre isso. Inocentes e crianças morriam de formas horríveis em desastres que alguns diziam ser obra de Kreinto, outros diziam ser obra do acaso, outros estavam muito ocupados se reerguendo para discutir. A terra já não parecia mais a mesma e balançava-se com frequência, o ar am alguns momentos parecia ter mais força que uma casa e levava-as ao chão. Naquele tempo, famílias ficavam contra elas mesmas. Ninguém entendia o que estava acontecendo. Os sábios diziam que estava tudo escrito em Sankta, mas, nesses momentos, ninguém queria saber do livro sagrado.

Ainda assim, continuavam comemorando as festas sagradas. Talvez por quererem um momento de felicidade, talvez por estarem no automático. Esta é uma pergunta que eu nunca soube responder.

Não sei se os julgo. Afinal, quem vive no fim do mundo realmente reconhece o momento no qual está vivendo?

Aiyra estava observando Guinu enquanto colocava as flores nas lamparinas para que fossem penduradas nas casas. Era o dia da Festa das Abelhas e ela e suas amigas estavam encarregadas da decoração da Vila de Prudenta. No ano anterior, ela havia sido incumbida apenas de jogar para o alto as pétalas das flores enquanto dançava no meio do povo. Agora, contudo, como completara duas décadas de vida e já não era mais uma criança, começaria a receber tarefas mais complexas que anteriormente. Ela não sabia se gostava dessa mudança ou não, mas uma coisa fazia questão de manter a tradição: continuava escolhendo flores de pétalas laranjas para combinar com o adorno em seu cabelo.

A Festa das Abelhas era comemorada todo ano na Vila de Prudenta. Era apenas uma das muitas festas para relembrar as evidências de Kreinto, aquele que inspirou os antepassados do povo da Vila a escrever o livro sagrado que seguiam, o Sankta.

Kreinto era um ser perfeito e tinha pleno conhecimento de tudo. Quando os prudentos mais sensíveis a ele tocavam nas coisas que saíam da terra, diziam poder senti-lo. O povoado acreditava que, como liam em Sankta, Kreinto havia criado todas as coisas apenas com a sua voz. O livro sagrado, por sua vez, estava cheio de histórias sobre como ele falava e se aproximava dos antepassados dos prudentos com muita frequência. O que estava os incomodando cada vez mais, era o fato de que as coisas estavam começando a ficar difíceis por ali, e Kreinto parecia ter alguma coisa melhor para fazer do que ouvir as suas preces. Algumas pessoas ficavam com raiva dele e duvidavam de sua misericórdia tão citada em Sankta.

Os que estavam ali, amavam a Kreinto. Quem não o amasse, não aguentava permanecer na vila.

O povoado acreditava que um dia ele esteve entre eles e fez grandes coisas, mas isso fazia tanto tempo que alguns deles duvidavam, mesmo que os relatos estivessem escritos em Sankta e disponível para todos eles consultarem. Apesar disso, alguns comemoravam as festas como meros rituais que eram para uns uma obrigação, para outros uma diversão, esquecendo-se totalmente do motivo pelo qual festejavam em primeiro lugar. Eventualmente estas pessoas deixavam a vila em algum momento, totalmente fracas. Acontece que sempre acontecia a mesma coisa: enfraqueciam, então acreditando ser verdade os boatos de que fora dali havia um elixir muito poderoso capaz de curá-los, saíam da vila e ninguém nunca mais os via.

Guinu trazia os postes com as lamparinas e Aiyra o seguia, decorando-os com as flores que carregava num cesto pendurado em seu braço. Ao término de sua tarefa, limpou o suor do rosto e aproximou-se de Aiyra.

- Lindas flores. - disse, apontando para o cesto, mas olhando para ela.

À luz da lamparina, o cabelo dele parecia ter mechas mais claras entre os cachos em finos zig zags que rodeavam sua testa. Suas pupilas, uma vez negras, estavam agora laranjas, como que acesas pelo fogo. Aiyra deu um sorriso. Não era de hoje que Guinu se aproximava dela, contudo, ele ainda a desconcertava.

- Obrigada.

- Não vai dançar este ano? - perguntou, enquanto passava sua mão numa das flores que estavam na decoração.

- Não. - colocou o cabelo negro e longo como um pano atrás da orelha. - Completei duas décadas, agora minhas tarefas são outras. - sinalizou o cesto em seu braço.

- Vejo que sim. - interrompeu o que estava fazendo e voltou-se para ela. - Bom, é uma pena. Suas pétalas laranjas sempre se sobressaíam no meio das outras... vão fazer falta.

- Não é tão ruim assim, existem coisas que posso fazer hoje que eu não poderia antes. - ela estava se referindo ao fato de agora ser permitido que ela participasse da Festa das Abelhas até mais tarde, sem precisar se recolher com as crianças para casa assim que terminassem a cerimônia.

Aiyra voltou ao seu trabalho.

- É verdade. - ele foi andando confome ela ia decorando o lugar. - Você vai conosco à praia?

- Claro, por que não iria? - remexeu o cesto para achar flores mais bonitas. - Sempre tive curiosidade de saber o que os adultos fazem lá depois da cerimônia.

- Tem certeza? Algumas pessoas costumam demorar um ou dois anos até participarem do passeio à praia. - pegou uma flor que Aiyra havia deixado cair no chão e ficou brincando com as pétalas. - Eu mesmo, você sabe, não fui no meu primeiro ano.

- Bom, então eu acho que sou mais corajosa que você - ela pegou a flor da mão dele e colocou de volta no cesto. - Tenho que ir, até mais tarde.

Guinu observava enquanto ela saía. O vestido bege parecia sem cor em contraste com o cabelo que balançava atrás de si. Longo e acinturado, ele ia de um lado para o outro com graciosidade mas sem chamar a atenção, deixando este trabalho para o grande adorno laranja que usava no cabelo. Tão lindo que era, alguns chamavam o mero acessório feito com as mãos de coroa. Ela se sentia lisonjeada e abria um longo sorriso toda vez que a elogiavam com base no que havia feito. As mãos de uma pessoa eram muito apreciadas na Vila de Prudenta e não se importavam se o trabalho era pequeno ou simples na hora de rasgar elogios.

Tecidos Acrobáticos 🎪Onde histórias criam vida. Descubra agora