23 - Segundo encontro pela madrugada

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Agora

As madrugadas que se seguiram foram conturbadas. Aiyra achava difícil dormir, pois seus pesadelos estavam devorando o seu sono e a fazendo acordar aflita no meio da noite. Algumas vezes, de tanto medo, não conseguia voltar a adormecer, mas sempre tentava, ainda que acabasse vendo o amanhecer. Os treinos ficavam cada vez mais difíceis de serem executados uma vez que seu corpo não descansava o suficiente. Para piorar, Badika estava oficialmente desaparecido e Aiyra não conseguia parar de pensar nas possibilidades de o que havia visto e constatado da última vez que falou com Pefrus serem uma pura ilusão. Com todos aqueles ferimentos e ainda fugir do circo era plausível para ele e sua força, mas arriscado demais para quem sempre abaixava a cabeça para o dono daquele lugar. Todo dia, seu subconsciente temia que Pefrus o encontrasse e ele aparecesse machucado novamente. Na verdade, em alguns momentos de egoísmo ela torcia para que ele de fato aparecesse pois desejava vê-lo nem que fosse de um relance.

Naquela dia, estava pensando nele quando acordou no meio da noite. Já não suava mais ao despertar dos pesadelos pois havia se acostumado. Era como se ser assombrada e perturbada fosse a sua rotina inconveniente com a qual precisava se conformar. Estava acostumada e acomodada. Afinal, o que poderia fazer para mudar as coisas? Não controlamos nossos sonhos, certo? Se nem mesmo o cansaço a estava vencendo, o que mais poderia vencer? Na verdade, não admitia, mas havia desistido há muito de tentar. E não me refiro apenas às suas conturbadas noites de sono.

Acontece que naquela madrugada uma determinação a havia pegado de jeito como quem é arrastada pelos cabelos. Mas esta era uma determinação em detrimento de terceiros, mais especificamente Badika. Ele não saía de sua cabeça. Volta e meia ela o via ao fechar os olhos e ouvia seu sorriso quando se lembrava dos momentos que passaram. Ouvi dizer certa vez que se duas pessoas passam por momentos terríveis juntos, os laços construídos são muito mais fortes que com aqueles que passamos a bonança. Talvez fosse por este motivo que ele se tornara tão especial em tão pouco tempo. Sua vida na Vila estava distante e sabia que lá todos estavam bem. Com Badika era diferente. Havia uma certa dependência. Ela sentia ter que protegê-lo, cuidar de suas feridas e curar suas mágoas. Ela acreditava ter o poder de fazer desaparecer suas cicatrizes. Esquecera, no entanto, de perguntar a ele se estava interessado nesta mudança.

Talvez tenha sido esta dependência que a fizera levantar-se novamente naquela madrugada. Ainda que da última vez tenha se deparado com algo traumático, saiu para um passeio no meio da noite. A esperança tola e ingênua de encontrar Badika a cegara. A sua crescente inquietação a engolira. Ela queria apenas se levantar. Queria sentir o ar fresco. Queria poder conversar com alguém. Na sua cabeça, tudo isto fazia sentido. Então finalmente se levantou.

A noite estava idêntica ao dia em que havia encontrado Pefrus Artem com uma versão desfigurada de Ália Brosan no meio do caminho, e isto a fez hesitar por um momento. O silêncio mesclado ao som que seus passos provocavam quando seus pés tocavam o chão eram calmantes. Sentiu lentamente seus ombros abaixarem e relaxarem os músculos. Não havia percebido a intensidade com que os estava segurando para perto de si. Eles doeram um pouco, mas era uma dor de alívio. Tentou relaxar outros músculos do seu corpo quando ouviu um som distante. Segurou a respiração e sentiu os olhos ficarem quentes junto com seu rosto quando as lágrimas vieram aos olhos.

Ela só queria um segundo de paz.

O som estava vindo de dentro da floresta. Ela engoliu o choro, impedindo que as lágrimas cruzassem o seu rosto e foi até lá. O que quer que fosse, queria ver logo, resolver logo e acabar logo. Estava cansada de jogos e enigmas. Estava simplesmente esgotada demais para voltar ao seu quarto pensando em mais uma coisa.

Fios dourados escondiam o rosto que estava virado para baixo. Encostada na árvore, estava Zyskla, vestindo uma camisola de fino algodão que estava molhada. Ela tremia, mas Aiyra não sabia se era de frio ou pela intensidade de seu choro.

- Ei, o que houve? - sussurrou Aiyra.

Ela pensou na ironia que era o que estava acontecendo. Zyskla em frangalhos no tronco de uma árvore enquanto ela era a pessoa a oferecer ajuda. Seus olhos estavam inchados e seu rosto borrado de maquiagem. Era possível ver também alguns resquícios pretos e vermelhos em suas mãos trêmulas.

- Oi.

- Oi. - ela se abaixou perto da amiga. - Pode me dizer o que está acontecendo?

Zyskla sorriu.

- Você parece bem.

- Nem tanto.

- Não se preocupe, a culpa é minha. - Seu semblante frágil voltou ao rosto - Às vezes penso que nunca deveria ter te trazido para o Circo de Xalen.

- Como assim? - franziu a testa - Você parecia feliz quando Pefrus me aceitou.

- Verdade. Bom, não sou tão feliz quanto aparento. - ela voltou a sorrir - Mas sou boa atriz, é meu trabalho ser.

- Zyskla, o que está acontecendo? Será que você pode me explicar por que motivo está molhada deste jeito?

Ela se encolheu.

- Precisava me lavar, mesmo depois de tantas vezes ainda me sinto suja.

- Do que você está falando? - ela tentou tocar o ombro da outra mas desistiu, parecia tão pequena que iria quebrar.

- Sabe, Aiyra, tudo na vida tem seu preço. Ter um número solo não seria diferente. Eu espero realmente que você saiba disso.

- Por que está me dizendo estas coisas?

- Porque acho que precisa ouvir. - ela apertou ainda mais os braços cruzados na frente do corpo - Você soa como uma pessoa corajosa e eu admiro isto, mas aí me lembro de que isto se deve à sua ignorância.

- E do que eu preciso saber? Por Kreinto, faça algum sentido!

- Você precisa saber que quando Pefrus está obcecado por alguém não há nada que o pare. Eu fui tola e ingênua por achar que conseguiria controlá-lo, mas ele está sempre dez passos à frente. - Então ela olhou para a frente, como quem fala consigo mesma ou pensa alto. - A culpa não será minha se eu desistir à esta altura dos acontecimentos, não?

- Zyskla, você precisa se levantar daí. - ela estendeu os braços para a garota no chão que segurou em sua mão e se reergueu. - Você vai se trocar e me explicar o porquê está falando essas coisas. Vamos ou vai acabar como Ália e sendo atacada por um dos ursos de Tsyarah.

Ela jogou a cabeça para trás quando caiu na gargalhada.

- Um urso? Foi isso que ele contou? - Então riu mais um pouco antes de se recompor e se desvencilhar bruscamente dos braços ajudadores da amiga. - Vá dormir, Aiyra.

E foi rapidamente se afastando com a camisola suja de terra.

Aiyra não dormiu naquela noite. Passou ela em claro pensando no que tinha ouvido e ligando pontos para que pudesse fazer algum sentido.

Então ela entendeu. O urso. Badika e Ália. O sangue que escorria de suas cabeças. Seus corpos prostrados e incapazes de se mexerem sozinhos. Zyskla completamente desesperada. Aquela não fora a única noite na qual derramou lágrimas quentes no travesseiro e tentou, em vão, soluçar em silêncio.

No dia seguinte, era cedo pela manhã quando Zyskla apareceu como que do nada e puxou Aiyra para longe. Ao contrário do dia anterior, ela estava mais arrumada que nunca. Cabelo, roupas e rosto impecáveis. Parecia um monumento quando cuspiu as palavras.

- Esquece tudo o que você ouviu. - ela apertava com força os braços de Aiyra - A noite de ontem não aconteceu, você não me encontrou, eu não disse nada. Entendeu?

- Você está me machucando. - tentou se desvencilhar mas foi em vão.

- Diz se entendeu!

- Tudo bem, entendi.

Zyskla se afastou e a rigidez de seu corpo se desfez.

- Ótimo. - ela se virou para ir embora, mas antes que fosse, parou e completou. - Ah, e vê se esquece essas tuas caminhadas pela madrugada. É perigoso. Fique com a ignorância, é mais reconfortante.

- Sem mais caminhadas. - assentiu.

Assim acabaram seus momentos de alívio momentâneos e descobertas enigmáticas na madrugada. Ela aprendera há muito dizer aquilo que as pessoas queriam ouvir. Agora teria de achar outra maneira de entender as lacunas que permaneciam sem respostas.

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