26 - Pôr do sol no Monte Leste

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Antes

O dia já estava pela metade quando despertaram na Vila de Prudenta. As pessoas levantavam tarde no dia seguinte a Festa das Abelhas e, por isso, diminuíam a carga de seus trabalhos, o que deixava tudo mais calmo. Estar bem descansado era muito importante pois na próxima manhã tudo voltaria ao normal e a vila estaria funcionando como antes.

Da casa dos Vitania era possível sentir o cheiro de ceia da tarde pós festividade. Os prudentos tinham o costume de esquentar aquilo que havia sobrado da cerimônia no dia seguinte, assim ninguém precisaria estar na cozinha. Enquanto faziam a refeição à mesa, conversavam em plena harmonia, como se não houvesse nenhum problema ou queixa uns sobre os outros. Fora um momento muito agradável. Assim que terminou de comer, Aiyra se levantou e foi até o Monte Leste para seu sindonemo diário. Faltavam poucas horas para o pôr do sol quando ela saiu.

Sua casa ficava quase na extremidade oeste da Vila, então, para chegar lá, precisaria percorrer um longo caminho. Contudo, não se importava, gostava de caminhar sozinha para colocar os pensamentos no lugar.

Antes de chegar ao pátio, passou por algumas casas. As moradias da Vila eram feitas de tijolinhos e cada uma num tom conforme o gosto e a personalidade da família. A sua, por exemplo, era num tom de azul turquesa como o céu aberto numa tarde de sol. No seu caminho, haviam casas das mais variadas cores. As ruas estreitas de terra se estendiam no meio delas e eram gradativamente verdes conforme chegavam perto dos portões. Os prudentos tinham o costume de cultivar pequenos jardins nas frentes de suas residências e aproveitavam a grama da beira do caminho para plantá-las. Alguns gostavam de cultivar apenas um tipo, outros misturavam e deixavam a frente de suas casas mais coloridas que a decoração da Festa das Abelhas. Era primavera e o perfume que subia delas era de fazer qualquer um sair para um bom passeio pelas ruas da Vila.

Alguns prudentos andavam pela praça, que marcava a divisão entre as duas regiões da Vila, quando Aiyra chegou ali. A grama se estendia por toda a sua extremidade e flores, arbustos e plantas medicinais cresciam por conta própria onde bem entendiam. Apesar disso, nem se o povo decidisse organizá-las ficaria tudo tão simétrico. Ainda haviam algumas decorações nos postes, sobras do dia anterior. Quase chegando do outro lado da praça, era possível enxergar a biblioteca à esquerda e, atrás dela, estava a floresta que dava para o portão e saída da Vila.

As casas da região Leste eram um pouco mais afastadas umas das outras e menores. As pessoas ali costumavam ter muitos filhos, por esse motivo, sempre haviam crianças na rua correndo e brincando. Por onde ela passava, os pequenos cantavam uma cantiga de um dos livros antigos contidos na biblioteca, mas mudavam a parte que falava o nome do autor e colocavam no lugar o nome uns dos outros. Os adultos, em suas varandas, riam cada vez que trocavam a letra.

O dia brilha hoje
Daqui a pouco está de noite
E Ariou vai fugir daqui

O caminho aqui é largo
Logo chegamos no alto
E Plicon vai sumir

Depois de muito tropeçar
Cair de pernas pro ar
E Aiyra o Monte Leste vai subir

Ela riu quando ouviu o próprio nome, apesar de ter sentido um pouco de vergonha.

Atrás da floresta que levava ao portão da Vila, o sol se abaixava cada vez mais pesado. Aiyra desejou chegar no topo da montanha antes que ele fosse embora.

Estava agora no pé dele. O Monte Leste era um tanto íngreme, mas não parecia tão difícil de subir, além do fato de haver uma trilha aberta por alguém que passou por ali antes.

A calça que Aiyra vestia era de sua avó e iria ajudá-la a se locomover até o topo. Kira também tinha o costume de subir para seu sindonemo diário, mas agora não ia mais com tanta frequência. Hoje, estavam todos cansados, então era possível avistar somente alguns poucos, aqui e ali, fazendo a mesmo trilha. Mesmo sabendo que estaria vazio e seus pais tendo a aconselhado a ir no dia seguinte, ela decidiu que iria logo, pois a Cerimônia do Amanhecer a deixara com vontade de ver o pôr do sol. Agora, com duas décadas de vida completas e seladas pelas cerimônias do dia anterior, não era mais obrigada a seguir o que ordenavam, pois sua vida passara a ser sua própria responsabilidade. Agora, apenas ouviria conselhos e decidiria, ela mesma, se iria seguir ou não. Àquela altura, poderia, inclusive, optar por deixar a vila. Talvez tenha subido ali para ver de fato o pôr do sol, ou talvez para ver se era possível vislumbrar o mundo além de seu povoado. As más línguas diziam ser a segunda opção, mas nunca se soube ao certo.

Apesar de terem algumas pedras no percurso, o que dificultava o seu caminho, ela conseguira chegar a tempo de ver o sol se pondo atrás das casas ao oeste da Vila. Assim que chegou ao topo, resolveu fazer seu sindonemo diário e vislumbrar o horizonte apenas quando terminasse.

Olhou para o seu peito e repousou a mão direita ali. Olhou para o pôr do sol e se pôs a conversar com sua lâmpada.

- Sabe, não entendo o motivo de termos de fazer isto todos os dias. É tão enfadonho! - suspirou. - Queria muito que pudéssemos nos conectar apenas sendo bons prudentos, não fazendo mal a ninguém e respeitando as regras da boa convivência. Não compreendo por que motivo a luz apaga mesmo quando não faço nada de errado. Hoje os tempos são outros e não sei o porquê de continuarmos a seguir um livro tão velho. São muitas coisas fora do meu alcance, e agora que tenho duas décadas, parece que entendo menos ainda sobre a vida. Só queria que respostas práticas estivessem no Sankta, assim eu não teria que usar este tempo sagrado para ficar fazendo indagações. Bom, - pegou o pequeno livro que carregava consigo - já que é preciso, então é preciso. Mas confesso que - olhou para os lados antes de continuar - tenho curiosidade de conhecer o mundo lá fora, e já não sei mais se é tão perigoso assim.

Sentou-se numa grande pedra que tinha ali perto de onde estava, abriu o pequenino livro e se pôs a ler em voz alta:

A terra que você pisa
Amanhã não pisará
O que ali você cultiva
Amanhã podem roubar

Aquilo que você veste
Esperai para ver que perece

A terra que você almeja
É eterna e não há tristeza
O que em esperança você cultiva
Vale mais que riqueza em vida

Porque o seu coração estará
No motivo que você cultivar

De olhos fechados, ela repetiu os dois últimos versos repousando novamente a mão no coração. O brilho começou a ecoar da lâmpada em seu peito e ela soube que Kreinto estava ali. Suspirou ao perceber.

Quando terminou seu sindonemo diário, ela foi para a parte mais longe do Monte Leste, mas dali era possível apenas vislumbrar a grande floresta que os separava dos não-prudentos. Ao constatar isto, virou-se para fazer o caminho de volta ao seu lar.

Estava de noite quando começou a descer e já se podia ver as luzes das casas serem acesas. Os prudentos que, como Aiyra, gostavam de imitar a história do Sankta na qual um homem subia a montanha para falar com a lâmpada a sós, desciam o Monte Leste. Esperando por eles e como que em resposta à luz que emanava de seus corações, as lamparinas de suas casas reluziam de longe.

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