12 - Parece que você não vai se dar bem aqui

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Agora

Quando Zyskla e Badika estavam ocupados demais para dar atenção à recém chegada, Aiyra se viu sozinha com seus pensamentos. Decidiu, então, sair da lona, que agora estava cheia de outros circenses, para respirar ar puro do lado de fora e colocar sua bagunça mental no lugar. Ou pelo menos tentar.

O pôr do sol deixava tudo em tons de laranja e ela se sentiu em casa quando se lembrou do seu passeio ao Monte Leste neste mesmo horário do dia. A grama cintilava dourada e se remexia de um lado para o outro, numa dança que significava que o clima estava prestes a esfriar. As pequenas lonas pareciam refletir a luz para a principal, onde Pefrus havia dito que os espetáculos aconteciam. Ela estava curiosa para ver do que se tratava tudo aquilo que eles falavam com tanta empolgação. Mas, neste momento, queria ouvir apenas a voz em sua cabeça.

Se sentou com cuidado, pois as roupas que Zyskla a emprestava pareciam ser muito mais frágeis e muito menos práticas que as que usava na Vila. O vento ameno refrescava sua pele ao roçar nela. O cheiro que sentia era quase como o cheiro de chuva, ainda que o céu estivesse limpo. Ao encostar a mão no chão, sentiu a textura áspera da grama e da terra, contrastando com a aparência que o sol dava a elas ao cintilar a sua luz.

Levou a mão ao coração ao perceber que estava como que cumprindo o seu ritual após a festa das abelhas, mas não sentia vontade de conversar com Kreinto e seu livro estava longe. Seu coração deu um pulo de preocupação ao pensar se sua família iria atrás dela. Não queria que ninguém passasse pelo que ela passou naquela floresta. Fora doloroso demais.

Ela começou a se indagar se talvez reviver aquele capítulo de sua vida a tivesse deixado tão dormente ao ponto de simplesmente concordar com tudo o que havia acontecido a seguir. Afinal, não era sua intenção viver com uma nova família. Na verdade, nunca soube o motivo pelo qual saíra da Vila, mas sempre esteve certa de que seu objetivo era voltar. Só não entendia o porquê de ainda não tê-lo feito até agora.

- Pensando muito? - Badika chegava, suado e ofegante, como quem vinha correndo.

- Sim, ainda não tive tempo de fazer isto até agora. Não tive oportunidades para ficar sozinha.

- Se você quiser, eu posso sair.

- Não, não estava te expulsando. Pode ficar, talvez me até me ajude.

Ele se sentou ao lado dela com os cotovelos nos joelhos. A blusa branca que usava estava suja e colada no corpo. Aiyra olhou para ele e analisou.

- Estava com os animais?

- Sim. Não parece, mas Esme dá muito trabalho. Tem o temperamento de Zyskla.

Aiyra riu.

Ele olhou para ela por alguns segundos, e então voltou os olhos para o horizonte e suspirou.

- Você vai voltar, não vai?

- Não sei ainda.

- Pefrus e Zyskla estão empolgados demais com você. Eu, particularmente, nunca entendi tamanho entusiasmo. Nada pessoal, mas não me parece que você vai se dar bem aqui ou algo do tipo.

- Bom, como eu disse, estou pensando. Apesar de querer muito voltar para a minha família, não sei o que vou responder a eles quando me perguntarem o motivo de eu ter saído.

- Entendo. Eu mesmo não disse nada para a minha família quando saí.

- Por quê?

- No ano que eu vim para o Circo de Xalen, estava tudo um caos onde eu morava. A guerra corroía todos os nossos recursos aos poucos. Casas eram tomadas de leitos e a nossa seria a próxima. Meu pai defendia o governador com unhas e dentes, ainda que estivesse claro que aquela luta contra o rei já estava perdida. Ele era um estúpido. Eu prometi defender meu irmão e falhei. Com a morte dele, não vi mais motivos para continuar ali, fugi da guerra como um bom covarde e não olhei para trás.

- E sua mãe? Também a acha estúpida?

- Nunca a conheci. Nós éramos proibidos de ver as nossas mães, ao nascer íamos direto para o palácio sermos treinados pelo comandante do rei. Cada homem do povo era apenas um número de um exército. As mulheres ficavam de fora, para preservarem a integridade de seus corpos para a diversão. As que queriam se envolver, eram permitidas apenas cuidarem dos feridos. Ainda assim, eram vistas como imundas e grande parte dos soldados e das próprias mulheres as ignoravam.

- Isto é... estranho.

- Nojento, você quis dizer. Fui entender muitas coisas quando saí de lá. Me pergunto todos os dias o que do meu povo ainda carrego em mim.

- Você não esquece isso, não é, Badika? - disse Zyskla, se sentando de frente para os dois e de costas para o sol se pondo. Estavam tão imersos na conversa que não a ouviram chegar. - Já que estamos falando de nosso passado, vamos lá!

Ela se levantou e começou a mexer na sua roupa.

- Este foi quando eu caí de uma pirueta, consegui chegar ao chão sem me machucar mas prejudiquei o espetáculo e precisava ser punida por isso. - Ela apontou para uma cicatriz no seu braço. - Este foi o fatídico dia em que eu errei a posição das mãos, tinha apenas seis anos mas dependendo do seu ponto de vista eram seis anos de prática. Um erro principiante como este era inadmissível. - Ela mostrou agora uma que ficava atrás de seu joelho esquerdo. - Está é inesquecível! Aterrissar de um salto sem flexionar os joelhos é perigoso demais. Ela está aqui para me lembrar de que eu posso ter lesões. - Então ela beijou o seu ombro. - Então, chegamos ao suficiente de histórias tristes por hoje ou vocês querem ver mais? - silêncio - Eu tenho mais uma caso queiram...

Ela foi levantando sua roupa quando Badika gritou.

- Zyskla! Chega! O que veio fazer aqui?

- Nossa, não posso mais conversar com meus amigos? Preciso te dar satisfações? Bom, já que quer tanto saber o que estou fazendo aqui vou dizer. Pefrus quer nos levar até a vila de Aiyra para fazermos uma apresentação lá.

- Ele só pode estar fora de si.

- O que acha? - disse, se virando para a garota que até agora tentava digerir o que havia ouvido - Ele pretende libertar a todos e desconstruir essa mentalidade que não faz mais sentido. Não é uma ideia magnífica?

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