Agora
Carroças e carruagens tremiam como dentes no frio ao passarem pela estrada esburacada de Konutu. Haviam muitas delas pelo caminho. A passagem estava tomada por integrantes do circo que chegavam em mais um lugar para realizarem mais um espetáculo. Em plena luz do dia, era difícil de olhar para todas aquelas cores variadas que passavam. Ainda assim, haviam crianças correndo atrás deles. Elas riam e empurravam umas as outras, numa competição saudável de quem conseguiria chegar mais perto. Era tudo uma grande brincadeira, e as suas risadas mesclavam com as rodas ao chão como se seguissem a batida para criar uma nova melodia.
Esta seria a nova rotina de Aiyra. Teria de se acostumar com isto. Mal havia começado sua vida no circo e já estava cansada. A viagem durara muitos dias, pareciam uma eternidade. Ela achou que fosse ser mais divertido. No início até que foi, quando ainda estavam com os ânimos para cima e se arriscavam a cantar músicas e contar histórias. Agora estavam apenas enjoados com aquele balançar contínuo das carruagens nas quais estavam e sentiam saudades de poderem se esticar para dormir. As suas juntas doíam e a cabeça latejava. A água estava acabando e, por isso, precisavam economizar. Aiyra já estava fazendo isto desde o começo, na verdade. Queria sentir vontade de fazer xixi o mínimo de vezes possível, pois não ficara nem um pouco confortável com a necessidade de se aliviar numa moita. Era nojento e humilhante.
A visão das janelas revelava um lugar muito bonito. Um campo muito amplo onde se balançavam muitas árvores com folhas num tom de rosa muito claro. O céu ali era tão limpo que parecia refletir todas as cores que tocava e fazê-las brilharem, espalhando um esplendor colorido por todos os lados.
Já era possível avistar, de onde estavam, as construções e a agitação de pessoas característicos de uma cidade. As pessoas ali eram diferentes, constatou Aiyra. Os vestidos vibrantes de Zyskla não fariam tanta diferença e não seriam tão discrepantes naquele ambiente. As mulheres andavam com seus rostos muito pintados. Todas eram muito pálidas em todo o corpo, mas nada se comparava ao branco de suas faces. A boca muito vermelha era pouco carnuda e os olhos, apesar de apertados, eram bem marcados. Talvez a quantidade de coisas que carregavam apenas no rosto fosse de fato tão exorbitante como os visitantes de Konutu pensavam, mas era impossível negar que, apesar disto, a discrição e a elegância eram evidentes.
Aiyra duvidou de tudo o que Badika havia lhe contado no caminho. Aquele não parecia um lugar que estava em guerra. Talvez as coisas tivessem mudado depois que ele foi embora. Entretanto, o tom amargo que carregava em sua voz ao chegar naquele lugar talvez provasse a veracidade de sua história quando disse:
- Sempre tão preocupados em esconder. Nem parece que escravos de Konati sustentam os seus luxos.
- Olha, agora que vejo por alto Konutu, posso dizer como uma pessoa que já esteve nos dois lugares que isto está longe de acabar. - comentou Zyskla, de maneira entediada - Seu país não tem a menor chance.
- É óbvio, nosso próprio rei é um tirano. Estamos ocupados demais com problemas internos para revidar à altura.
- Você se arrepende de ter fugido? - indagou Aiyra, depois de alguns segundos em silêncio. Talvez quisesse projetar para outra pessoa uma pergunta que fazia a si mesma todos os dias.
- Às vezes... mas então me lembro de um provérbio nosso.
- O que ele diz?
- Se o próprio líder é um tolo, lutar por ele é um grande fardo. Melhor seria amarrar ao pé uma pedra, e correr por quilômetros descalço.
Quando voltou a observar pela janela, Aiyra via a cidade de Konutu com outros olhos. Passou a procurar por alguém que tivesse em sua fisionomia um grito por ajuda. Não achou ninguém. De fato, escondiam muito bem o povo konati escravizado e, assim como sua família, eram excelentes em manter as aparências. Deixou seus olhos se perderem num sorriso de lábios vermelhos e, agora, o achou o mais superficial do mundo.
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A montanha que acharam para armar as tendas era alta e fria. Zyskla avisou para Aiyra que a vontade de Pefrus, enquanto estivessem em Konutu, era que ela fosse treinar com os trapezistas. Ficou um pouco decepcionada porque pensava que poderia escolher, mas sabia que estava demorando demais e alguma hora isso iria acontecer.
Tásia e Tansie pareciam duas crianças. Eram franzinas e não deviam ter mais que 16 anos. Ainda assim, era impressionante a habilidade que possuíam. Pulavam e arremessavam uma a outra numa altura exorbitante como se tivessem nascido fazendo isto. Era algo nato, claramente um talento natural que aprimoraram e lapidaram com o tempo até se tornarem excepcionais. Além disso, eram tão doces e agradáveis que faziam qualquer um esquecer o frio que fazia no alto daquela montanha.
Eram daquele tipo de pessoa que faz você se sentir culpada por sentir inveja.
Ainda assim, não pôde evitar se comparar quando viu o seu reflexo. Aiyra ficava claramente muito mais larga naquelas roupas coladas como uma segunda pele no corpo que as irmãs doçura. Ela não tinha o hábito de treinar e nem comia tão pouco quanto elas. Essas coisas na vila eram desnecessárias. Possuía músculos e era forte por carregar água do poço para casa, mas aparentemente a sua rotina não era suficiente. Nunca, em todo a sua vida, se sentira assim. Era um sentimento estranho de tristeza, desespero e autocomiseração. Se sentia tão à vontade na Vila, lá cada um era de seu jeito. No circo, por sua vez, havia uma repetição, como que um código implícito de que você também precisaria se tornar assim. Alguma cobrança não dita de que você receberia sempre os mesmos olhares se permanecesse do seu jeito. Uma imposição velada de que todos precisariam cortar e retirar suas carnes, se necessário, para se tornar mais um. Um deles. Fazer parte. Se encaixar. Algo implícito que você só enxergava quando tentasse fazer parte deles. Um padrão.
Nenhum dos trapezistas disse coisa alguma para Aiyra. Mas ela sentia aquilo. Os olhares atravessados que tentavam ser discretos mas falhavam; o sufoco que foi para entrar no figurino; a forma como bufavam pelo trabalho que ela estava dando; e, por fim, as mãos apertando os lugares que aparentemente estavam sobrando seguido de risos.
Estava longe de casa e havia feito uma escolha da qual não queria voltar atrás. Iria começar assim que saísse dali.
No dia seguinte, na hora do almoço, recusou a comida. Disse que não estava com fome.
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Tecidos Acrobáticos 🎪
Mistério / SuspenseAiyra acaba de completar duas décadas de vida e, na Vila de Prudenta, isto significa que está na hora de tomar muitas decisões importantes. Ela tem muitos planos e um deles é casar-se com Guinu. Entretanto, quando sua amiga vai embora e chega um boa...