I

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Ele lembra de morrer. Ele estava velho e ainda sim, sua maestria com a espada permaneceu. Foi uma última tentativa, uma desesperada de salvar alguém que ele sempre amou, independente das escolhas, das palavras, da verdade que esteve lá e ele não viu - não quis ver -, até ser tarde demais.

Quando ele despertou, estar desorientado foi apenas uma consequência. A verdade é, ele não esperou acordar. Então uma mulher se curvou sobre ele, olhos cheios de amor e preocupação, foi naquele momento que ele lembrou, além de sua morte, além de sua outra vida.

Ele era Tanjiro Kamado, ele viveu como Tanjiro, leigo do passado, do que havia sido antes. Ele foi uma criança de sorriso e olhar gentil, ele amava seus irmãos e era um bom filho. Agora, ele ainda era Tanjiro, mas ele também era Yoriichi Tsugikuni. Foi estranho, a sobreposição das memórias, o confundia e fazia sua cabeça doer. Era como ter duas personalidades convergindo.

Como Yoriichi Tsugikuni, ele pouco demonstrou, seus sorrisos foram raros, suas palavras foram poucas, ele nunca estava muito próximo de ninguém, apenas da mãe e daquela que foi sua esposa. Agora, ele era alguém que sempre sorria, que mantinha conversas animadas, cercado por seus irmãos mais jovens, seu pai e mãe, e tantos outros, amigos, vizinhos e conhecidos, mesmo estranhos.

Os próximos dias passaram confusos, ele despertou por curtos espaços de tempo e sempre havia alguém ao seu lado. Ele dormiu e reviveu memórias, novas e velhas. Da próxima vez que despertou, mais uma mudança o surpreendeu, foi estranhamente reconfortante, algo com o que ele estava acostumado depois de viver com tal peculiaridade por toda uma vida. O mundo transparente o comprimentou, tornando sua percepção mais apurada, fazendo seu mente mais avida.

Levou quase um mês para que ele conseguisse está desperto, por mais que minutos ou um par de horas. Enquanto deitado em seu futon, ele as vezes ouvia as palavras preocupadas dos irmãos, o temor que eles tinham em perdê-lo como ao pai, a mãe sempre os consolava com palavras encorajadoras. Contudo, quando era ela sentada ao seu lado, ele podia ver o mesmo medo mesclado a preocupação. Mesmo que agora se sentisse como uma outra pessoa, além de apenas Tanjiro Kamado, ele ainda os amava e mesmo que não fosse seu habitual ou... não tivesse sido - era confuso distinguir -, ele sorria para eles, em uma tentativa de os tranquilizar.

Numa noite, quando Honako tomou o lugar de Nezuko, lavando o lenço e o torcendo, antes de pousa-lo sobre sua testa, a menina hesitou, suas feições infantis demonstrando curiosidade.

- Sua marca cresceu nii-san, parece chamas agora.- Sua voz aguda era alta no silêncio noturno.- Você sabe porque?

- Acho que foi por ter lembrado.- Ele diz, a voz rouca. Ele nunca foi um mentiroso, talvez contar sobre sua situação o fizesse parecer louco, porém, mentir para sua família parecia errado, o que para ele, era pior.

- Lembrado?

- De quando fui Yoriichi Tsugikuni.

Sua irmã piscou parecendo apenas confusa, tão jovem como era, dificilmente entendia as implicações de sua confissão. Sua mãe, por outro lado, entendeu e na noite seguinte, quando foi ela sentada ao seu lado novamente, ela o questionou sobre, tendo Hanako comentado com ela a respeito.

- Tanjiro-kun, há algo que queira me contar?- Seu tom é suave e deixa um agradável calor em seu peito.

Ele não precisou pensar sobre isso, falar com a mãe foi natural, Tanjiro conviava em cada um deles, sua família, seu pilar.

- Okaa-san, é confuso, tenho essas memórias de uma outra vida, é como se agora eu fosse duas pessoas diferentes.

Sua mãe cantarolou em apreciação, seus dedos suaves deslizaram com carinho por seus cabelos, desfazendo os poucos nos com cuidado.

- Eu vejo. Sabe, querido, independente do que tenha sido, você ainda é meu filho. Não importa o quanto mude ou que escolhas faça, sempre terá meu amor.

- Não acha que estou mentido? Que estou delirando?

- Jamais! Você nunca o fez, seria mais difícil para mim acreditar que o estivesse fazendo agora.

Seus olhos estavam, não surpreendentemente, húmidos. Ele se arrastou para mais perto dela, sentindo seu calor.

- Você quer ouvir uma história, Kaa-san?- Ele sussurrou, o tom trêmulo.

- Claro querido, conte-me.

Então ele falou, a contando sobre como era quando Yoriichi Tsugikuni, sobre seu gêmeo, sobre seus outros pais, sobre a solidão, sobre a flauta, sobre quando ele lutou pela primeira vez e o quanto odiou isso. Ela nunca o interrompeu, o ouvindo sem julgar, apreciando suas palavras, com atenção e cuidado. Quando sua voz falhou ao falar da esposa e filho não nascido, ela o abraçou, quando falou de suas falhas, ela não o condenou. Em algum ponto, suas lágrimas rolaram e ela apenas o apertou mais perto. Ela cantou para ele, como já havia feito e ainda fazia com os mais novos.

Sua voz dissipou a tristeza que aquelas lembranças traziam, seu calor o embalou. Quando ele despertou no dia seguinte, ele ainda era Tanjiro Kamado, ele ainda era Yoriichi Tsugikuni. Independente do nome que levasse, algo se fez certo para ele naquele instante, ele iria proteger sua família, sua mãe e irmãos. Dessa vez, ele queimaria o próprio mundo, se isso significasse fazê-los felizes.

Quando ele desceu a montanha, com carvão enchendo sua cesta, meses depois, Tanjiro foi lembrado que quando a felicidade é destruída, sempre há o cheiro de sangue.

Seus passos afundaram na neve, sua respiração nublando o ar. Ele avançou, seu corpo esquentando com a adrenalina pulsante em suas veias. Era como reviver um pesadelo. Em outra vida ele foi incapaz de salvar sua família, com esse segunda chance, mais uma vez, ele ameaçava falhar.

Com suas memórias como Yoriichi Tsugikuni, ele respirou, concentrado e focado. Sua visão do mundo transparente, o permitindo distinguir as formas na escuridão, foi também quando ele viu algo terrível e familiar. Sete corações e cinco cérebros, era como daquela vez, séculos antes.

Sua raiva não era explosiva, era fria. Ele puxou o machado, o segurou como o faria a uma espada. Quando o demônio se moveu para golpear Nezuko, Tanjiro dançou, o fogo iluminando a escuridão.

O progenitor dos demônios, olhou em choque para onde deveria está seu braço, antes de reconstrui-lo. Seus olhos vermelhos se desviando para o menino que o atacou, o primeiro a ser capaz de feri-lo em séculos e terror verdadeiro o tomou. Sobreposto a imagem menor, estava um homem desprezível, o único que quase o matou, que o teria matado, se ele não tivesse fugido. Se não antes, agora ele tinha certeza absoluta, aquela família devia desaparecer, ele não deixaria nenhuma daquelas pragas sobreviver a noite.

Sol Nascente (Hiatus)Onde histórias criam vida. Descubra agora