II

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O sangue pintou de vermelho o chão nevado. Seu próprio corpo era uma coleção de arranhões, alguns profundos o suficiente para sangrar.

Era a primeira vez nessa vida que ele lutava, era a primeira vez que ele usava sua respiração. Esse corpo ainda não estava habituado a tal extremo, ele sequer tinha uma espada de verdade, mas Tanjiro não recuou. Ele não o faria, não quando Nezuko ainda estava ali, desmaiada e indefesa, segurando um corpo menor em seus braços.

Seus erros continuavam a cobrar, tirando muito mais do que qualquer um poderia dar sem quebrar. Haviam sido duas vezes agora, duas vezes ele deixou sua família morrer. Nas duas vezes, havia sido o mesmo assassino, indiretamente ou não.

Como Tanjiro, uma criança que sempre foi tão empática, ele sentiu mais. Mais raiva. Mais dor. Enquanto se movia, cortando como manteiga os membros que continuavam a crescer, ele não pudia deixar de sentir. Seu coração era um monte de retalhos, ardia, por mais que seu sangue parecesse gelo em suas veias em representação a sua raiva, ardia.

O céu estava mais claro quando o progenitor recuor, havia tanto ódio em seu olhar carmim, mas também medo. Tanjiro não se importou. Ele o mataria, ele não o deixaria ir, não como antes, não quando esse erro continuava a tirar tudo que lhe importava. Ele seria egoístas assim, mesmo o mais nobre dos homens, tinha seu limiar e Yoriichi, atravessou aquele ponto todo uma vida antes. Ele mataria Muzan, não por ele ser um demônio, não por ele ser o inimigo da humanidade, por por ter tirado sua família, uma e outra vez, por ser quem era, imutável em sua perversão.

Justiça e vingança, muitas vezes andavam de mãos atadas. Não era inédito, de certa forma, poderia ser corriqueiro. Distinguir o que era uma ou outra, se mostrava uma tarefa inexequível.

Com o nascer do sol se aproximando mais a cada segundo, seu oponente se torna mais evasivo, mais desesperado. Tentáculos farpados disparam, eles quebram as árvores ao redor, farpas de madeiras chovem como projéteis. Tanjiro é bom em se esquivar, afastando com o machado aquelas que se aproximam demais. Ele pula as árvores que caem, ele não repara nas dores de novas lesões, nos músculos que protestam pelo estiramento. Seu foco está nos corações, nos cérebros.

Seu machado corta um, dois e três dos corações, antes que novos tentáculos se regenerem e avancem. Ele está pronto para corta-los, como o fez por quase toda a noite, não era um problema, ainda sim, um inconveniente. Com horror, entretanto, tarde demais, ele ver mais uma vez o quão desprovido de qualquer honra é seu oponente, não deveria surpreende-lo, ele deveria ter esperado por isso.

Os tentáculos disparam para Nezuko, sua irmã que ainda cheira a vida, mesmo que fraco, mesmo que o cheiro esteja errado. Era uma distração, e funciona. Ele não pode deixá-la morrer, ela é tudo que lhe resta. Então, Tanjiro se lança para ela, impulsionando seu corpo, forçando-se até que as veias pareçam estourar. Os tentáculos caem com baques surtos sobre a neve revirada e manchada, quando ele os corta com mais força que o necessário. Um ruido mais alto, como um mal auguro, é tudo que ele pode ouvir, quando o cabo de seu machado racha, a lâmina caindo pesada no chão. Só um, foi tudo que restou, o suficiente para levar a vida já efêmera.

Como Yoriichi Tsugikuni talvez ele tenha sido mais racional, mas ele também era Tanjiro, aquele feito de sentimentos, como um raio de sol, brilhante. Para proteger sua família, ele faria qualquer coisa.

Se ele não tinha uma arma, ele não podia atacar, porém, ele ainda podia defender, foi com essa determinação que ele avançou. Quando o tentáculo o atingiu, a dor pareceu ecoar por todo o corpo, por mais que tenha sido apenas o ombro, a entrada é dilacerante, passa pelo tecido grosso e pela pele, fragmentando ossos e tirando o ar de seus pulmões. Seu sangue correu rápido pela ferida, a ponta farpada tendo feito um grande estrago em sua entrada e saída, ainda presa ao corpo, prometendo uma retirada igualmente brutal. Ofegante, ele trabalha para voltar a respirar o padrão familiar, seus olhos se erguem, varrendo neve e entulho. Do outro lado, separados por árvores caídas e ainda sim, ligados, um terrível sorriso se formou na face do demônio.

- Eu me pergunto...- Aquela voz soou contemplativa, maliciosa.- Como descendente daquele homem, seria capaz de me dar o que desejo?

Apertando os dentes com força, o ruivo engole o bile em sua garganta, a mera perspectiva embrulhando seu estômago. Tanjiro o encarou com força, não cedendo, ele agarrou aquela coisa que ainda se mantinha alojada em seu ombro e apertou, pronto para puxá-la. O sorriso repulsivo do outro não desapareceu, apenas crescer. Foi então que algo mudou, não como quando ele despertou com suas memórias, não como quando ele recuperou sua visão. Não houve familiaridade, tão rápida quanto a invesitda que o feriu, restou apenas uma dor terrível e errada, incomparável, debilitante.

Seus joelhos dobraram, ele caiu para frente. Algo se misturou ao seu próprio sangue. Pareceu lava, estava o queimando, o destruindo. Aquele demônio estava falando algo, mas seus gritos o fizerem incapaz de entender qualquer palavra. O que poderia ter sido um segundo depois, ele não saberia, o tentáculo se foi, puxado para longe, um golpe brusco que abriu mais a ferida, mas aquela altura, esse dor em nada se comparava a doença em seu sangue.

Do outro lado, Muzan estava intrigado e um pouco desapontado. O descendente daquele homem estava tendo uma reação adversa ao seu sangue, ele não estava morrendo, mas ele não estava se transformando como os outros. No início daquele encontro, foi sua decisão matá-lo, quando, enfim, conseguiu atingir o menino, entretanto, ali viu uma possibilidade e a tentação levou a melhor dele, era uma possibilidade e depois de tantos séculos, não lhe custaria tentar.

Com uma breve olhada pada o céu matutino, observou o amanhecer cinzento, ofuscado pelas nuvens de inverno, era um risco desnecessário e ele não era dado a tolices. Não importava mais, seu sangue estava agora naquele corpo, se o menino sobrevivesse ou não, se conseguisse cumprir com suas expectativas ou não, ele estava sob seu poder, como todos os outros. Assim, bastaria um pensamento e ele desapareceria daquele mundo, reduzido a uma poça de carne e sangue. O menino não era mais uma ameaça, ou assim, ele pensou, ao se virar e deixar para trás mais uma família destruída.

Ofegante, com seu corpo em chamas, Tanjiro se arrastou para perto de Nezuko. Ele a abraçou, a ela e ao seu pequeno irmão, este que parecia gelo puro em sua pele fervente. Enterrando sua face nos cabelos da irmã, ele inalou seu cheiro, apreciando a vida que ainda se prendia a ela e foi tudo que importou. Dessa vez, ele não falhou completamente. Mas ainda não era o bastante, não importava o que estivesse acontecendo com seu corpo, Tanjiro sobreviveria aquilo e ele, continuaria a protege-la, ao mesmo tempo que faria Muzan queimar, até que nada restasse, além de cinzas.

Era uma promessa, uma com a qual ele se comprometia, como Tanjiro Kamado e Yoriichi Tsugikuni.

Sol Nascente (Hiatus)Onde histórias criam vida. Descubra agora