VI

422 49 5
                                    

Os dias passam, semanas se tornam meses. Cada dia é uma lufada de ar suspensa por uma ansiedade crescente.

Ele espreita na sombras, escondido nas folhagens quando um grupo de caçadores corre abaixo. Não foi a primeira vez, estava se tornando mais comum encontrar patrulhas, nesses dois meses ele já mudou um total de três vezes. Foi inevitável em certo sentido, da mesma forma que a ansiedade crescia em seu íntimo, Tanjiro suspeita que a apreensão toma os integrantes do organização. Estando naquele tipo de trabalho o súbito desaparecimento de tantos onis, a ausência de casos de desaparecimento ou mais mortes, deixa um brecha para suposições.

Ainda que os entenda, ele não pode se permitir ser visto, não por sua própria integridade, mas pelo da irmã, ela continua dormindo, incapaz de se proteger, uma preza facil para o mais jovem recruta. Tanjiro não irá parar, ele continuará a caçar, sua aposta permanece, da mesma forma que chamou a atenção do corpo, ele espera chamar a atenção dos superiores e Muzan. Assim, quando não pode mais ouvir o caminhar dos caçadores, ele pula, seu corpo é leve e o baque é abafado pelas folhas e chão úmido.

Mais uma noite se desvanece na alvorada, assim, ele refaz o caminho familiar, entre árvores que crescem selvagens uma pequena cabana se mescla a sensação de abandono, ninguém diria que alguém esteve ali em muito tempo. A madeira está podre em grande parte, por dentro, Tanjiro pregou uma lona ao teto arruinado, uma tentativa de manter Nezuko segura do sol. A irmã está enrolada em cobertores grossos, o único futon que conseguiu está sob ela, é fino e um pouco batido, mas é o que pode conseguir com o pouco dinheiro que juntou em alguns bicos esporádicos - ele não arriscaria permanecer muito tempo em um trabalho, em especial os manuais, suas unhas e força incomum tendiam a atrair atenção indesejada.

Em silêncio, ele senta ao seu lado, sua mão desliza para a testa dela, conferindo sua temperatura, é frio, não como um cadáver, mas também não como um humano. Tanjiro se distrai, deixando seus dedos correrem por seus fios, ele trabalha para que cada nó se desmanche, seria inconveniente para a irmã lidar com eles quando despertar, com isso, desse fardo ele espera lhe livrar.

As manhãs são monótonas, silenciosas e solitárias em certo sentido. Ele não dorme como a irmã, não tanto quanto ela pelo menos, em realidade, o sono faz pouco para ele, é muito mais desconfortável sucumbir ao mesmo, em seu reino tudo que lhe espera são lembranças infelizes e pesadelos. Assim, em algum momento entre cuidar do bem estar de Nezuko e a caçada que se aproxima, ele se retira, para a sacada desmoronada, onde se senta e deixa que o sol o banhe com seus raios calidos.

Com os olhos fechados, ele aprecia o calor, voltando seus rosto para o brilhante astro. Enquanto o sono lhe deixa desconfortável, sob o sol ele se sente bem, é uma alívio da fome em seu estômago vazio, é como ingerir um poderoso suplemento, o cansaço se desvanece e ele se sente mais enérgico. Respirar aquece seu peito, ele inspira e expira, ao mesmo tempo que se permite pensar, algo que ele tenta fazer pouco ultimente, pois sua mente continua a ser uma zona de lamentação e esperanças fugazes.

Nezuko está bem, tão bem quando um oni sem alimentação poderia ser, ele se atém ao lado positivo, ela não definha, ainda que adormecida, seu corpo é saudável. Suas caçadas são constantes, os caçadores estão mais atentos e ansiosos, se ele chamou a atenção do corpo, talvez um pouco mais de anfico traga aqueles que ele quer. Essa noite ele estenderá seu campo de caça, a rápida queda de suas fileiras deve tomar a atenção dos poderosos, mesmo alguém como Muzan se sentiria curioso pelo rápido desaparecimento de seus peões, variáveis são um incômodo, alguém como o progenitor parecia gostar de ter o controle sobre tudo, assim Tanjiro pensava.

_

O céu é cinzento, essa é uma noite mais escura que as demais, mesmo com a tempestade que espreita, o ar está parado e tal calmaria lhe traz mal agouro.

A lâmina azulada faz seu trabalho com precisão, a cabeça do oni cai e rola, enquanto ele o amaldiçoa, seu corpo se desfaz. Tanjiro presta seu respeito, rezando para que em outra viva, essa alma possa ter um destino melhor, longe da maldição que contamina tudo o que Muzan toca - como ele não pode, antes e agora, sua vida foi manchada. - Pensamentos assim, deixa um gosto amargo.

Odiar é um sentimento pavoroso, isso toma sua mente, o faz obcecado e insensível ao que resta, dispostos a sacrificar tudo por uma vingança que não trará nenhum deles de volta. Ainda, Tanjiro odeia Muzan, ele é apenas humano - foi -, ainda que saiba que tais sentimentos pode corroer, desapegar-se deles e fingir que os mesmos não existem, lhe adoece igualmente. Ele é sincero consigo mesmo nesse ponto, ele aceita que nunca foi perfeito, não como o irmão pareceu pensar que ele fosse. Ele tem esses sentimentos feios, ele apenas não se apega unicamente a eles, há algo mais importante que vingança ou ódio, sua família, sua promessa, a vida em si, é uma soma de pequenas coisas, carregadas de significados próprio, nenhum dos quais ele estaria disposto a deixar ir para se fixar em algo que em nada lhe agregaria.

Tanjiro ainda mataria Muzan, não apenas por vingança ou egoísmo, mas para proteger. Nessa vida, quando ele o achasse novamente, Muzan não iria voltar a fugir, toda a dor que ele propagou, todo o desprezo pela vida, Tanjiro o faria arca com as responsabilidade de seus atos hediondos.

Reorganizado o capuz sobre seus fios avermelhados, Tanjiro sorveu o ar mais frio, ao mesmo tempo que um raio distante iluminou o caminho vazio. O homem que teria sido a preza daquele demônio, há muito desapareceu, foi um alívio não ter que lidar com ele, por mais que Tanjiro o tenha salvo, o medo que inevitavelmente viria ao ver suas feições, foi sempre desconfortável. Ele não pode culpa-los por isso, é apenas instintivo temer algo desconhecido, em especial aquilo que se mostra com arestas afiadas, tão claramente inumano.

O barulho do trovão ecoa, a ilusão do som vibra pelo chão. No passo seguinte, Tanjiro sente, quando o ar deixa de ser estagnado e o vendo sopra feroz. Seu corpo congela, como as primeiras gotas que caem, molhando suas vestes, as grudando a pele. Ele engasga com o ar, o sorvendo faminto, ao mesmo tempo que seu coração dispara.

Séculos se foram, uma vida se foi, ainda sim, mesmo agora, distorcido como estava, impregnado pelo sangue, Tanjiro - Yoriichi - sabe quem é, ele duvida que alguma vez pudesse esquece-lo, não que ele quisesse. Suas falhas se acumulam sobre seus ombros, ele não pode se mexer, reagir, ainda que saiba, mesmo que a urgência cresça para que ele faça algo, qualquer coisa. Então, não há mais tempo, não para fugir, não para lhe preparar para aquele confronto com o qual ele não imaginou tão cedo nessa vida.

Uma sombra se projeta a frente, não houve ruído algum, tudo que lhe denunciou foi o cheiro e agora, sua presença desce, sombria e mais gélida que a chuva. Tanjiro deve erguer seus olhos, agir menos como um recém criado amedrontado, porém, o receio, a incerteza ainda o detém, enquanto suas últimas lembranças de antes saltam e consomem sua mente, trazendo um conflito entre as personas. Ele não sabe quem deve ser, Tanjiro ou Yoriichi, como reagir, como sentir.

- Você é o demônio a caçar como um caçador de onis.- Essa voz enche sua mente ainda mais, não mudou, é o mesmo tom.- Isso, não há motivo para eu permitir.

Daquela vez, Yoriichi lembra, ele estava chorando, foi a última vez que o viu, para lhe libertar da vida como um demônio, a vida que ele escolheu viver, amaldiçoado ao eterno luar. A última família que lhe restou, Muzan tirou. Doeu mais saber que essa foi uma escolha do próprio irmão, doeu reconhecer o quanto ele o odiou, seu único irmão, a quem Yoriichi mais admirou, mesmo quando humano, esse já o desprezava, e o motivo por trás disso, Yoriichi apenas supunha, as ideias equivocadas que o envenenou e o distorceu.

O ar se agita mais uma vez, mesmo sob a chuva, o cheiro que se agarra ao que já pertenceu a Michikatsu, lhe toma, revira seu estômago. A essência de Muzan é tão presente, o cheiro de sangue e morte se mesclando tão completamente. Yoriichi se sente como todos aqueles anos antes, é como está naquele lugar novamente, a mesma convicção que lhe abre um buraco sangrento no peito, essa mesma convicção que o faz segurar o punho de sua espada, que o faz chorar.

Olhos avermelhados se erguem, uma determinação florescente, a mesma que o impulsionou em seu último fôlego. Seus olhos ardem, as lágrimas silenciosos se perdem sob a chuva, mesmo assim, ele chora, pois aquele demônio a sua frente, foi Michikatsu, e̶r̶a̶ ̶M̶i̶c̶h̶i̶k̶a̶t̶s̶u.

Era injusto, o quanto os deuses o fazia forte, mas incapaz de proteger sua família, parecendo o condenar a perdê-los e agora, até à amatá-los. Dessa vez, nem o tempo o pouparia de carregar aquele pecado.

Sol Nascente (Hiatus)Onde histórias criam vida. Descubra agora