Tanjiro observa a irmã dormir, já fazem três dias, ele não pôde acordá-la, isso o preocupa, o faz debater os motivos possíveis que a fizeram assim. O mais provável é a falta de nutrientes, desde aquela noite quando o mundo deles mudou, manchado por sangue e a imagem de seus parentes mortos, nenhum deles comeu, não quando o único alimento que parecia atrai-los era a carne de humanos vivos. Entretanto, há algo que refuta uma parte dessa dedução, nenhum deles está definhando, seus corpos parecem saudáveis. Mesmo a insanidade, o desespero de uma fome insaciável, parecia distante em sua mente, onde o maior problema eram as memórias sobrepostas.
Ainda, o conflito de personalidade é inerentemente dele, o mesmo não se passa com a irmã, não houve divergência de seu estado apático, não a ferocidade e impulsividade que vinha de recém-criados, mesmo quando cercados por tantas possíveis presas. Ele não consegue entender, uma vida inteira como caçador lhe traz quase nenhuma resposta, seu conhecimento sobre a biologia demoníaca é básico, inútil nessa situação, conhecer a debilidade desses corpos quase imortais não salvaria a irmã daquilo que a aflige. A incapacidade de fazer mais é debilitante, ele tenta ser positivo sobre tudo, resiliente, mas é difícil, o fracasso continua a assombrá-lo.
Tanjiro é um nome, uma nova identidade, mas não significou nada, deve ser sua sina perder todos, sempre incapaz de proteger sua família, sempre os vendo ser tirados pela morte ou aquele estado inumano, por sua própria escolha ou não. Ele sente seus ombros curvarem, parecem pesados, seu corpo é forte, mas ele se sente tão cansado, ele gostaria de deitar ao lado da irmã, deixar sua mente parar tantos pensamentos, apenas por um minuto, um instante, mas ele não faz, ao invés, se ergue, é fim da tarde, o sol é apenas um instante de luz, o vento frio carrega humidade da garoa que caiu o dia todo.
Há pouco que pode ser feito durante as manhãs e tardes, ser um caminhante do sol não se mostrou vantajoso até então, quando os demônios se escondem durante esses períodos, suas caçadas devem ser ao luar. Essas mesmas caçadas estão sendo de pouco utilidade - como ser forte quando tudo que você faz parece insuficiente? Ele realmente tenta banir essas questões, ele precisa se agarrar a algo, qualquer coisa-, os demônios que ele encontra são a base, tão imaturos quando ele nessa vida, sem informações, sem conecções.
Ele conta os minutos em sua mente, é um meio para trazer seu foco de volta, quando as sombras se mesclam e as cores se perdem no breu. Ele acaricia os fios macios do cabelo de Nezuko, ela não reage. Metodicamente, ele se certifica de que tudo está no lugar, a coberta que ele conseguiu a mantém aquecida, ter mais conforto em uma caverna é difícil, mas ele tentaria trazer mais hoje, talvez um futon e mais cobertores.
Deixar a irmã faz seus passos pesados, como andar por melaço, ele é persuadido a ficar, não insistir contra o aperto que tenta dete-lo. Tanjiro respira, seus pulmões esquentam o ar gelado, seu corpo se lançando a frente, mais rápido, para se dissuadir de permanecer. É sempre o cheiro das cidades o primeiro que se mostra, seu olfato afiado além do confortável - ele sente o estômago embrulhar quando sua boca enche de saliva, o cheiro do sangue tão palatável.
Ele para no limiar, onde as sombras das casa são mais densas. Puxando o capuz sobre seus fios avermelhados, Tanjiro continua, ainda que seus traços demoníacos não sejam tão pronunciaveis, é melhor prevenir, assim ele não encara ninguém, da mesma forma, ao falar, Tanjiro evita expor muito de seus caninos afiados.
Caçar um oni é uma rotina familiar, ele tinha uma vida de experiência em suas costas, tanto sob o esquadrão, quando sozinho - ele tenta não pensar, como isso, caçar, foi um de seus últimos atos, uma última tentativa de salvar alguém que amou-. Assim, Tanjiro se mistura a multidão, essa é uma cidade relativamente populosa, fazendo do mercado noturno movimentado. Entre as conversas, ele treina seus ouvidos para se ater a detalhes que poderiam lhe proporcionar uma pista, menções de desaparecimento, ataque por animais, sombras monstruosas na floresta, um urso que acordou da hibernação mais cedo.
É assim que ele ouve, não menções possíveis, mais palavras carregadas de certezas.
- O número de onis na minha região esta baixo, não avisto qualquer um há pelo menos três noites.
Seus olhos correm pela massa de corpos, tentando ver mais que o mundo transparente, antes de se ater a um grupo de quatro homens. Eles estão sentados fora de um pequeno restaurante, há comida e garrafas de saque sobre a mesa, suas nichirins estão escondidas por tecido, mas fora isso, eles não são nada discretos.
O maior deles, com pintura facial e joias reluzentes, bebe um grande gole da bebida antes de dizer:
- Do que você esta reclamando? Deveria ser algo bom, significa menos problemas, ou você apenas quer algo para estripar?
Aquele que o responde é um homem cheio de cicatrizes, seu peito exposto mesmo no clima mais frio.
- Não, seu idiota! Apenas me faz suspeitar de que algo mais possa estar acontecendo.
O menor do grupo, com rosto coberto por bandagens e... aquilo era uma cobra? - Tanjiro tinha quase certeza que sim, ele podia ver seu pequeno coração batendo sob a manga onde estava escondida -, falou:
- O que você suspeita que seja? Um kizuki? Demônios são territoriais, talvez um tenha se mudado recentemente.
- Merda que sei, não consegui achar nada, se fosse um desses desgraçados, deveria haver pelo menos alguma menção de desaparecimento.- Aquele com cicatrizes disse, seu tom irritado, parecendo ter engolido um limão azedo.
O resto do diálogo é desligado de sua mente, Tanjiro sabe porque não há mais onis ali, é sua culpa, ele foi quem os caçou, noite após noite, após noite. Aparentemente ele havia atraído a atenção de alguém, apenas não era daqueles que ele pretendia. Ter caçadores em seu encalço não era desejado, isso apenas colocaria sua irmã em mais perigo, seu objetivo não era o extermínio, mas uma cura. Os caçadores não buscaram curar aos demônios, mesmo seus conhecimentos sobre sua biologia se resumia principalmente aquilo que lhes era útil em seu trabalho de os erradicar, pelo menos assim foi todos aqueles anos antes - ele duvidava que algo tivesse mudado quanto a essa percepção, não com o cheiro do ódio que impregnado aquele homem com cicatrizes chega a Tanjiro mesmo entre tantas outras pessoas, não com o desdém dos outros dois, não quando o outro que comeu tão diligentemente sua refeição era claramente um Rengoku-. Não, os caçadores não eram uma opção, assim, ele não pensa muito em como os demônios também não eram uma garantia concreta, que existiam tantas variáveis, todas tão claramente negativas, ainda, ele precisava acreditar em algo, uma esperança para o guiar, para não fazê-lo sucumbir sob o peso de seus fracassos.
Essa noite ele não caçou, ele deixou aquela cidade para tras, se distanciando na floresta, de volta para a irmã. Pelo resto da noite, Tanjiro recolheu os poucos pertences que juntou naquele meio tempo, segurou suas irmã em seus braços e correu, correu até sentir o cheiro da alvorada, onde se embrenhou nas sombras, suas iris refletindo os primeiros raios do amanhecer.
-
Foi apenas dois meses depois que ele o achou, um acaso que fez seu coração disparar, dentre todos os kizukis ele cheirou aquele que realmente temeu encontrar, um extremo contrário de como nunca sentiu medo ou receio pelo intitulado rei demônio. Aquele cheiro - familiar e tão errado - lhe congelou, o fez querer chorar, sempre foi uma possibilidade, mas pareceu cedo demais, ele ainda se sente incapaz de salvar qualquer um, especialmente não ele, aquele que chamou de irmão.
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Sol Nascente (Hiatus)
FanfictionAgora, seu nome era Tanjiro Kamado, mas em outra vida, ele foi chamado de Yoriichi Tsugikuni.