VII

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O presente se mostra uma réplica do passado. É o mesmo movimento, deriva da mesma postura. Como daquela vez, Yoriichi brande sua lâmina ao respirar, diferente do então, no agora, Kokushibo apara seu golpe - ele hesitou, houve um tremor em seus braços, um gosto amargo na boca, criar uma convicção é quase fácil, torná-la realidade, por outro lado, é mais difícil.

Michikatsu está surpreso, seus muitos olhos se mostram expressivos, onde um mar de fúria se agita, quando mais de sua imagem é absorvida. O menino Tanjiro não é tão semelhante ao homem Yoriichi, mas é engraçado como torná-lo um oni fez seu corpo mudar, não apenas por dentro, mas o exterior. Foi sua mente, as memórias que lhe persegue, inevitavelmente englobam os poucos anos que viveu como Kamado. É mais facil se ver como Yoriichi, ainda que ele tente se manter como Tanjiro, inconscientemente seu eu molda-se ao que lhe foi mais familiar.

Onis não envelhecem, mas seu corpo cresce, ele deixa de ver -se como um menino, para um quase homem. Não tão alto como quando Yoriichi, mas ainda, mais alto que sua idade implicaria. A marca em sua testa se desenrola, uma réplica de uma outra vida. Seus traços perdem parte da gordura infantil, se alongando e o deixando um meio termo entre o antes e o agora. Ele lembra um pouco o pai, Tanjuro, mais forte, mais saudável. Contudo, Yoriichi sabe que não é um Kamado que Michikatsu vê agora, com os brincos que se agitam sob a chuva na posse de uma lâmina nichirin, é um fantasma encarnado que voltou para lhe assombrar.

- Você...- A voz do irmão é fria, há uma miríade de sentimentos sombrios que escapam as feições que se voltaram disciplinadas em indiferença falsa.- O que é você?

É intrigante como ele não pergunta por quem, mas o que. Seu irmão não o chama, mas ele sabe, Yoriichi sabe que o mesmo já tem suas próprias convicções. Michikatsu nunca o viu como um ser normal, não estranha que o irmão não hesite em aceitar a situação apresentada, por mais absurda que devesse soar. Ainda, é triste como seu olhar queima frio, como o irmão não abranda, o vendo mais como uma praga, uma ameaça, que um ser querido, alguém que voltou depois de uma longa viagem - é hipócrita da parte de Yoriichi, o homem ̶m̶e̶n̶i̶n̶o̶, não deveria cobrar algo semelhante, não quando se tem guardada as memórias de seu último encontro naquela outra vida, onde ele quase o matou, onde ele gastou seu último suspiro em uma vã tentativa de alento.

Yoriichi não o responde, não há uma resposta correta para aquela questão. O que ele poderia dizer, no literal ele seria uma variante, um oni a escapar do progenitor, abençoado pelo sol desde o princípio, não compartilhando de um fome voraz. Ou seria ele uma assombração? Alguém que possuiu aquele corpo, manchando a vida de um menino inocente. Para o irmão, ele continuaria a ser uma memória infeliz, saber disso doi, contudo, não tanto quando saber que há muito pouco que ele possa fazer agora que mude esse fato.

Seu irmão rosna, há tanta raiva nele, suas lâminas ecoam o choque sob a chuva. Seus cortes se curam em segundos, ao mesmo tempo, o sangue que escorrem é lavado, tudo que evidência suas ferida são as fendas em suas vestes. É uma percepção desanimadora, Yoriichi entende seu dever, mas depois de morrer, depois de renascer e todos os acontecimentos que o levaram ao agora, ele não acha que possa fazer isso, o calor de sua respiração não é um refúgio como costuma ser, em realidade, se mistura a dor em seu peito, a intensificando, uma representação de tantos dilemas.

Ele perdeu sua família, não uma ou duas vezes. Para muitos uma vez bastaria para se ver em desespero, perdido em sua dor, em sua fúria. Ainda, ele se prendeu a um dever, ele falhou mesmo nisso. Então ele perdeu, novamente e novamente. Agora, ele se vê percorrendo aquele mesmo caminho, é solitário, amargo, é negar seu coração, ele já não sabe se pode ou se quer.

Sua respiração gagueja, é um deslize, sua lâmina raspa aguda na outra, a jogando para o lado, dando uma abertura para que o irmão corte seu torso, é um golpe profundo, teria o dividido se ele não tivesse se impulsionado para trás. A ferida costura, não rápido o suficiente para evitar que o sangue jorre. Ofegante, não por fadiga, mas por todo a batalha silenciosa em sua própria mente e coração, Yoriichi encara o irmão, nada da raiva cedeu, isso o faz engolir o bolo na garganta, deixar que o ardor em seus olhos seja lavado junto a chuva.

Sol Nascente (Hiatus)Onde histórias criam vida. Descubra agora