III

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A letargia permaneceu, assim como a dor, mas estava sob controle, felizmente. A agitação em seus braços o puxou mais ao presente, o cheiro do sangue embrulhado seu estômago, ao mesmo tempo que trouxe uma estranha sensação de fome.

Um rosnar baixo o fez abrir os olhos, o mundo era cinza, o sol escondido por nuvens grossas. A lembrança de sua família morta o fez se erguer agitado, apertando o corpo que se debatia em seus braços. Nezuko estava acordada também, ela estava bem, tão bem quanto uma pessoa recém transfomar pudesse ser.

- Nezuko, por favor, pare.- Ele pediu, sua voz rouca.

Ela estendeu suas mãos, suas unhas terminando em garras rosadas, afiadas, poderosas e letais, parecendo querer agarrar alguém. Algo pingou no braço que a envolvia, viscoso e quente. Sua pequena irmã salivava, sua atenção no pequeno corpo imóvel e agora, um pouco enterrado na neve que ainda caia. Seu coração apertou, ele queria chorar, mas havia algo mais importante agora que lamentar.

- Você não pode Nezuko, é nosso irmão, você precisa resistir! Por favor!- Ele não tinha vergonha em implorar, dignidade pouco importava agora, quando salvar sua irmã de se tornar um monstro era uma preocupação mais imediata.

Um soluço estremeceu o corpo que ele mantinha preso, algo mais molhou seu braço, ela estava chorando. Tanjiro a apertou, segurando suas próprias lágrimas, alívio tirando um pouco do peso que pareceu repousar sobre seus ombros. Ainda havia esperança, ele não havia falhado completamente, ele ainda tinha uma família a proteger.

O tempo se estendeu, ele não a soltou, não quando o cheiro do sangue ainda era tão forte. Era um risco, Nezuko podia reter algum sentido de quem já foi, mas seria tolice negar a realidade. Ela agora era um oni, a fome, o desejo pela carne e sangue, seria uma tentação constante. Mesmo para ele, havia algo diferente. Dessa vez não foram memórias de uma outra vida, algo havia mudado fisicamente, ele sentia em seu sangue, na forma dos caninos que cortavam seus lábios desacostumado ao tamanho, nas unhas que feriam suas palmas se fechasse com um pouco mais de força os punhos.

Ele que já foi um caçador de onis, agora era uma daquelas criaturas. A fome estava lá, mas era diferente do que esperava, ele não se sentia uma besta irracional, pronto para devorar seus irmãos e mãe mortos. Michikatsu o achava estranho, uma aberração, ele sabia disso e talvez seu irmão tivesse razão, mesmo quando transformado, ele não se sentia como um oni deveria ser. Ainda sim, ele não largou sua irmã, não apenas por ela, mas por ele também, não até que tivesse certeza de que nenhum deles sucumbiria aqueles instintos tão brutais.

Enterrando seu nariz nos fios, agora bicolor, de Nezuko, ele respirou fundo, apreciando seu cheiro, tentando remover o insistente odor de sangue. Estar ali, tão expostos, era um risco, em seu íntimo, ele apenas sabia que não queimaria, mas o mesmo não valeria para a irmã.

- Devemos enterra-los, rezar para que descansem.- Sua voz ainda era rouca, talvez pelos gritos, talvez pelo frio que ameaçava congela-los. Se ainda fossem apenas humanos, eles estariam mortos por hipotermia.- Você acha que pode se controlar?

Um grunhido suave, foi sua resposta, ele não entendia porque ela não podia falar, mas entendeu o que aquele pequeno som significava. Ele a soltou com cuidado, sem pressa, se erguendo, sem nunca deixar seus olhos se desviar de sua figura. Tomando sua mão, ele sentiu ela apertar, era apoio e anseio, ele retribuiu o gesto em uma promessa silenciosa de que ficariam bem, pelo menos, tão bem quanto poderiam naquela situação já trágica.

Nezuko cavou as covas com as próprias mãos, indiferente a neve que congelava o solo. Ele abraçou os corpos frios, os limpou do excesso de sangue, os envolveu com os únicos tecidos a disposição, os mesmos que usaram para dormir, o cheiro da família ainda viva impresso neles. Como Yoriichi, ele chorou quando sua família morreu e outra vez, quando partiu para enfrentar o irmão. Como Tanjiro, quando criança, ele chorou algumas vezes, mas houve muito mais sorrisos, agora, ele não sabia se ainda existiriam, enquanto as lágrimas que queimavam seus olhos desde de o início dessa tragédia rolavam por seu rosto frio.

Nezuko se ajoelhou ao seu lado, ela pousou sua cabeça sobre seu ombro, emitindo pequenos ruídos.

- Nezuko, prometo te proteger, vou concertar isso.- Ele sussurrou diante dos túmulos recém feitos.- Vou garantir que você volte a ser humana.

Era o mínimo que ele poderia fazer, tudo aquilo era sua culpa e isso o corria. Não importava quantas vidas ele tivesse, parecia estar fadado a cometer o mesmo erro, uma e outra vez. Mesmo que não houvesse uma cura, ele a inventaria, não importava o tempo que levasse, ele não iria desistir.

Uma nova presença tomou sua atenção, o caminhar era silencioso, abafado pela neve. Seus olhos, correram pela floresta destruída, ele pôde ver através de tudo aquilo, havia um coração pulsante, o sangue correndo, os pulmões se expandindo com a respiração que fortalecia o corpo, a intenção por trás do ato. Tanjiro se ergueu, puxando Nezuko protetoramente.

Como criador das respirações, foi fácil para ele identificar o movimento de seu oponente, antes que pudesse ser atingidos, um golpe na lateral da lâmina, desviou sua trajetória. O caçador, pareceu se surpreender por um instante, antes de ajustar seus movimentos e preparar outro ataque.

Enquanto se movia, afastanto os golpes, nunca os deixando ferir ele ou a irmã, Tanjiro ponderou. Sendo um oni, ele nunca poderia se juntar aos caçadores, ainda sim, havia algo que eles possuiam que Tanjiro gostariam de ter, para seu próximo encontro com Muzan.

Quando se conhece os movimentos de seu oponente, com habilidade o suficiente, desarmá-lo se torna uma tarefa fácil. Mais uma vez, ele desviou a trajetória da lâmina, sem se afastar, ele avançou mais rápido e golpeou o punho do espadachim, forte para que o aperto fosse afrouxado, sem delongas, ele segurou a lâmina e a tomou, com um chute, o espadachim foi jogado para trás.

Olhos de um azul marinho profundo observou com descrença a palma vazia e então, o demônio que ajustava seu aperto sobre o punho da lâmina roubada, suas feições se fecharam com frieza.

- Não deixarei que machuque minha irmã.- Tanjiro proferiu, testando o peso da lâmina.- Vou ficar com a espada.

Está claro que o caçador não os deixará ir apenas com isso, não sendo o que são, não quando há sangue manchando a neve e túmulos frescos ao lado. Tanjiro não deixará mais ninguém machucar sua irmã, isso inclui aqueles da corporação. Ainda sim, ele não era um assassino, como Yoriichi ou Tanjiro, machucar alguém nunca lhe trouxe prazer. Contudo, quando o caçador se mostra persistente, ele não guarda arrependimento em nocauteá-lo.

Ele arrasta o homem para a casa, a madeira estará para sempre manchada, mas agora, está limpa, ele havia tratado disso enquanto preparava sua família morta. Nezuko o segue em silêncio, ela olha para as manchas por um tempo mais longo, antes de puxar um dos últimos cobertores que restou. Enquanto isso, sem escrúpulos, Tanjiro remove a bainha da espada. Quando Nezuko se ajoelhando ao seu lado, ele a observa envolver o homem caído com a coberta, indiferente ao fato de que ele estava tentando matá-los há apenas alguns minutos. O homem está bem apertado agora, totalmente envolvido, como quando ela fazia o mesmo com Hanako, ou qualquer outro dos mais novos.

Enquanto ele a tiver, aparentemente, sua capacidade de sorrir não se perderá, pois é com um sorriso suave que ele dá um tapinha em sua cabeça e ela gruni satisfeita. Estendendo a mesma mão, ela a segura sem hesitar e sem olhar para trás, Tanjiro a guia para fora, o peso da lâmina ainda com ele. Da próxima vez, ele iria garantir que fosse a última. Afinal, quando se vive tanto, aprende-se que nada é para sempre ou absoluto, esse conhecimento, ele trataria de repassar a Muzan da pior forma.

Sol Nascente (Hiatus)Onde histórias criam vida. Descubra agora