"Ela me ignora, na esperança eu ainda fico"

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    Como o espaço do meu quarto é pequeno demais para sequer andar em linha reta em cima dos patins, sugiro que procuremos outro lugar para praticar. Théonísio propõe que comecemos na rua sem saída que fica atrás das nossas casas e que é rodeada de terrenos baldios com matos que sobem até nossos joelhos. O local está abandonado há anos e nunca é frequentado, além de dispor de diversos buracos no asfalto antigo e pequenas elevações onde poderemos criar obstáculos e treinar com mais dificuldade, afinal, precisamos estar prontos para tudo.
    Eu concordo com a ideia dele, mas estou preocupada com os insetos que rastejam nos terrenos abandonados. Durante um instante, gostaria que fosse inverno e eu pudesse vestir uma legging que cobrisse minhas pernas por inteiro e meias compridas, para dificultar que quaisquer bichos pousassem em mim. O pensamento me aterroriza, porém, é tarde demais para voltar atrás. Eu jamais admitiria que estou com medo de ir lá, até porque Théonísio zombaria de mim para sempre. Então, dadas as circunstâncias, me obrigo a passar o short jeans de cintura alta e lavagem clara, um dos mais apertados que tenho — o escolho pois quero prevenir acidentes — pelas pernas e fecho o botão, sentindo o tecido justo comprimindo minhas coxas. Calço meus tênis pretos que são tão velhos que os cadarços, outrora brancos, estão da mesma cor dos calçados, não importa o quanto minha mãe esfregue-os. Visto também um cropped de alcinhas com listras laranja neon, que para um pouco abaixo da linha onde fica o sutiã. Em resumo, pego itens velhos e frescos, que não me atrapalhem na hora de ajudar o mané daqui a pouco.

    Antes de sair, enquanto meu parceiro — detesto esse termo, mas, infelizmente, ele o é agora, certo? — me espera do lado de fora da minha casa, dou de comer para Maria Fernanda e fico observando-a nadar de um lado para o outro, para cima e para baixo, explorando o conhecido espaço de seu aquário. Chacoalho a cabeça para despertar de vez, pego meu celular, as chaves de casa e saio rumo à porta da frente.

***

    — Por que você nunca usa o cabelo solto? — Théonísio sibila, ofegante, já cansado com o peso dos patins de Lua nas mãos. Obviamente, eu não trouxe os meus. Se eu fosse ensiná-lo em cima dos meus, provavelmente acabaríamos esborrachados no chão. Prefiro ficar em segurança com meus tênis gastos. Hoje, é dia dele se arriscar. Eu só vou rir do circo de horrores.
    Estamos andando lado a lado, e eu respiro fundo antes de responder, balançando os ombros:

    — Porque não quero.

    Constato com o canto do olho direito que ele me encara.

    — Eu acho que você deveria usar solto mais vezes — insiste, com a voz enroquecida.

    — Eu acho que você não tem nada a ver com isso — viro o rosto para o lado, deixando meus cachos, que estão presos em um rabo de cavalo, baterem na base do meu pescoço. Percebo, com os buracos cada vez maiores no chão e os restos de lixo — latas de cerveja, bitucas de cigarro e pacotes de salgadinhos — que aparecem com mais frequência, que estamos chegando ao fim da rua sem saída. Eu estaco de repente, decidida a não ir, de fato, até o final dela, mas deixando um bom espaço para que Théonísio possa deslizar a vontade e sem preocupações com o local. Apoio as mãos na cintura e fico assistindo o meu vizinho perceber que está na hora de começar.
    Sem que eu precise dizer mais nada, ele vasculha em volta por um lugar menos sujo no meio-fio. Assim que o encontra, senta-se, jogando o corpo de forma pesada e tira os tênis, deixando-os um do lado do outro, encostadinhos com disciplina num canto da rua. Ele tem meias pretas nos pés e sustento a posição de mãos na cintura conforme ele coloca com cuidado os patins de Lua.

    — Não sei se estão apertados o suficiente — confidencia ele, num sussurro quase inaudível.

    Gosto que ele precise de mim para fazer isso. Precisa confiar em mim, nos conselhos que dou e precisará levar as minhas palavras como verdade absoluta. Depois de anos brigando feito gato e rato, é um conforto saber que ele será submisso a mim.

    Eu me agacho, colocando os joelhos no chão e sentindo o asfalto velho raspando a minha pele, e apoio o bumbum sobre os calcanhares. Desamarro os nós que Théonísio fez com meus dedos ágeis e acostumados a colocar os patins do jeito certo. Aperto-os com força quando prendo e sinto na minha testa a respiração de Théonísio que sai do seu nariz.

    — Pelo jeito, vou sair daqui com os pés amputados.

    Ergo o corpo outra vez, tirando com as palmas das mãos quaisquer vestígios de sujeira que possam ter ficado nos meus joelhos. Opto por devolver uma resposta com um pouco de verdade:

    — Pode ser que machuque um pouco no começo, mas você se acostuma.

    Viro de costas e começo a caminhar para longe, mas lembro que ele não tem como sair do lugar sem mim. Sem muita escolha, volto para onde estive segundos atrás e aguardo, de pé. As mãos pálidas e de dedos longos de Théonísio se estendem. Eu as agarro, e um pequeno espasmo atravessa os membros dele que estou segurando com força. Ignoro.

    — Olha só — falo com convicção. — Assim que você levantar, dobre os joelhos e incline o corpo para frente. Entendeu? Para frente. O instinto natural vai ser que você se curve para trás, mas preciso que você preste atenção e faça o contrário, ok?

    Ele assente, apertando os lábios com muita força.

    — Não acredito que vou fazer isso.

    Em um milissegundo, o corpo dele age de prontidão, me surpreendendo. Théonísio se levanta e, sem que ambos possamos pensar muito em nossas ações, se joga na minha direção, sua estrutura física chacoalhando violentamente. Os pés deslizam para a frente e para trás, parecendo com um bezerrinho que acaba de nascer e procura desesperadamente o equilíbrio nas próprias pernas. Antes que eu me dê conta, as mãos dele envolvem a minha cintura com força. Meu corpo vai um pouco para trás num movimento incosciente. Os patins não param de deslizar, e eu me vejo obrigada a colocar as mãos nos ombros dele de forma provisória para estabilizá-lo.

    — Théonísio — chamo, aguardando que ele pare de olhar os pés de forma angustiada e repare na calma que meu tom de voz transmite. Quando ele me fita, o medo em seus olhos é explícito. Tenho vontade de rir, mas não o faço, pois lembro que costumavam gargalhar de mim quando comecei a praticar e eu me sentia péssima. — Dobre os joelhos. Incline o corpo pra frente. — repito os conselhos anteriores. — Vamos, panaca, você consegue.

    Uma risada sai do fundo da garganta dele, tão natural que eu poderia sentir a pele dele vibrando com o som caso eu estivesse mais próxima.

    Ele faz o que peço, primeiro indo um pouco para frente, quase se jogando nos meus braços por completo, e depois dobrando as pernas. Finalmente, parece adquirir um pouco de estabilidade. Em paralelo, o cheiro de limpeza que senti mais cedo chega em mim de novo. Digo ao meu cérebro para se concentrar ao máximo nos movimentos de Théonísio, e não no seu cheiro idiota. No entanto, meu nariz não me obedece e funga com vigor, tentando captar o máximo de aroma dele possível. Para disfarçar, olho um pouco para o céu, como se eu estivesse querendo apenas ar fresco.

    Assim que volto o olhar para o rosto de Théonísio, ele me encara.

    — Desculpa — ele indica com a cabeça as mãos paradas em volta da minha cintura lisa. Coloca, então, uma no meu ombro, depois a outra. Um calafrio — mesmo no calor absurdo que está fazendo — percorre o meu corpo e eu tento parecer indiferente com a nossa súbita proximidade. Nas raras ocasiões em que nos tocamos, são rápidos abraços exigidos pelas situações, como aniversários, Páscoas e Natais. Nunca fizemos o que estamos fazendo agora.

    — Pode colocar na cintura. É melhor pra você — minhas palavras saem rápidas, esganiçadas e sem que eu as reconheça. Simplesmente saem.

    Os pelinhos finos dos braços de Théonísio se arrepiam, deixando as bolinhas presentes na pele ressaltadas, e vejo que ele treme um pouco.

    — Posso sentar? Acho que fiquei meio nervoso, com medo de cair. Sei lá.

    Eu aceito a sugestão. Minhas mãos, levemente suadas e ainda pousadas nos ombros dele, agem e conduzem o irmão da minha melhor amiga de volta ao meio-fio. Ele joga o corpo no chão, batendo com tudo no asfalto, as pernas indo sem que ele queira para frente e para trás. Contudo, Théonísio não parece se importar muito. Sua mão tira o cabelo dos olhos e um suspiro sai das profundezas da sua barriga. Seus olhos se fecham e, quando volta a abri-los, pergunta, ainda meio nebuloso:

    — Posso colocar uma música no meu celular? Vai nos distrair.

    Aquiesço.

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