"Sorrir e chorar e ter alguém pra compartilhar sempre"

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— Isso tá uma delícia — afirmo, cobrindo a boca com a mão fechada. Espio o rosto tristonho de Lua, que está sentada bem na minha frente na mesa da casa dela. Estamos eu, ela, o palhaço, e Mário, que preparou uma lasanha para nós. A comida, de fato, está bastante saborosa, mas não consigo espantar minhas preocupações por causa da expressão triste da minha melhor amiga. Ela costuma ser a pessoa mais animada que conheço, com o caráter e jeitinho parecidos com o da personagem Mabel, de Gravity Falls. Entretanto, hoje, logo depois que adentramos a casa, com Théonísio contando empolgadamente sobre seu progresso inesperado, Lua apenas assentiu, nem mesmo esboçando um sorriso, ou puxando assunto. Assim que seu irmão saiu para lavar as mãos — a sujeira das ruas o agonia terrivelmente —, ela agarrou o meu braço e pediu que, antes que saíssemos depois para treinar mais um pouco, eu fosse falar com ela. Precisamos almoçar primeiro, e confesso que a simples ação de engolir a comida está sendo difícil. Fico me perguntando sem parar o quê, exatamente, é tão urgente assim.

***

Após a refeição entre meus vizinhos e eu finalizar, me ofereço para lavar a louça suja, ao passo que Mário nega com veemência o pedido e diz que Théonísio está encarregado da tarefa. Sendo assim, aproveito a oportunidade para falar com Lua, que se senta no sofá da sua sala, com o pé esticado e os lábios ligeiramente comprimidos, gesto que me dá um susto e me deixa ainda mais nervosa.

— Desembucha, mulher — digo, tentando amenizar o clima. — Você me deixou preocupada. Fala logo. É algo com a sua mãe? — levo a mão ao peito, buscando opções do que pode ser o assunto da conversa. — Seus pais estão se separando? Sua mãe engravidou? — segundos se passam, e meus olhos se arregalam de desespero. — Ai, meu Deus. Você engravidou?

A expressão no rosto, até então, aflito, de minha amiga se suaviza quase que cem porcento, e me sinto no direito de soltar um suspiro de alívio. Não deve ser nada tão grave quanto eu pensei.

— Tá doida, Ester? — ela ri, o barulho alto, alegre e inesperado da risada me inunda e sinto-me um pouco mais preparada para o que está por vir, independente do que seja. — Achei que você me conhecesse! Tenho mais medo de engravidar do que de morrer, e você sabe o tamanho do meu medo de morrer. Acho que se eu estivesse mesmo esperando um bebê, você só saberia depois que eu estivesse enterrada de pavor.

— Credo — rio junto, inclinando o meu corpo para a frente e batendo com a mão na perna do banquinho de madeira que hospeda o pé de Lua, naquela estranha tradição dos antigos de "bater na madeira" para que algo não aconteça. — Ai, fala logo. Sério, amiga.

Lua volta a ficar séria e aperta as mãos, exageradamente e com força.

— Não é nada grave. Só queria avisar que vou passar uns tempos na casa do irmão da mamãe.

Meu corpo inteiro relaxa, a respiração saindo pela boca e as mãos parando de suar.

— Que susto! — permito-me rir outra vez. — É aquele seu tio médico... Como é o nome dele, mesmo? — desvio o olhar e forço o cérebro a vasculhar por todas as opções de nomes possíveis que se encaixem.

— Cléber. O Clébinho, irmão da minha mãe. Aquele de cabelo preto estranho que você só viu... duas vezes? — Lua sugere, mais rápida que meu raciocínio.

— Isso! Achei que eles não tivessem uma boa relação...

— E não têm mesmo — ela concorda, inspirando com vigor, para contar com detalhes uma história que eu já tinha escutado outras vezes mas que havia esquecido. — É tão idiota, mas eles brigaram porque combinaram de colocar os nomes dos filhos combinando, e a filha do Clébinho se chama Maria Odete, então o nome do Théonísio, assim como o meu e o dela, deveriam combinar entre si. Mas acabou que quem foi registrar os nomes foi o meu pai e ele mudou o do Théo de última hora, achando que ele sofreria muito na escola se tivesse o nome que minha mãe e o louco do Clébinho tinham escolhido num trato quando tinham, sei lá, dez anos ou coisa do tipo.

— Lembrei, lembrei, lembrei! — estiquei o corpo no sofá, querendo falar e mostrando para minha amiga que eu não tinha esquecido completamente desse barraco maluco da família dela. — E aí o seu tio nunca falou com o Théonísio e parou de conversar com a sua mãe, né?

— Sim, e ele também só me cumprimentava quando era, tipo, muito necessário. Senão, eu era ignorada junto.

— Nossa, isso é tão infantil e surreal... — digo, revirando os olhos e bufando.

— Eu sei, nem me fale — Lua assente, continuando a sua narrativa: — Mas ele soube do meu pé quebrado, acho que por aquelas fotos ridículas que a mamãe postou em que eu estava de repouso, e se ofereceu para que eu passasse uns tempos na casa dele com a Maria Odete. O Clébinho é médico, né, amiga, então ele ajudaria demais os meus pais financeiramente, já que ele conseguiria o tratamento praticamente de graça.

— Isso é muito legal — admito, um pouco a contra gosto. — Mostra que ele está dando um pouco do braço a torcer. Mas algo que me diz que você ainda não terminou.

A boca de Lua se crispa novamente.

— É. A cidade onde ele mora fica meio longe daqui... Você sabe, a quase cinco horas. É meio que um fim do mundo, não tem nem um lugar à beira-mar, como aqui. Então, vou precisar passar quase um mês lá. Talvez até mais, para que o meu pé fique bom e eu volte quando ele estiver melhor.

— Entendi, e sei que isso é necessário. Talvez você possa se divertir com a Maria Odete. Quantos anos ela tem?

— Fez dezessete mês passado. Ela é só um pouco mais velha que eu e o Théo.

— Então! E a gente pode se falar por Whatsapp toda hora, como já fazemos. E vai passar rápido. Quando você voltar, poderemos andar de patins de novo. Você achou que eu ia ficar magoada?

— Ah, sei lá — Lua parecia querer dizer algo a mais. — É que eu sei como você sempre gostou do verão e agora com essa apresentação maluca que você vai fazer com o meu irmão... Achei que não fosse querer ficar sozinha.

Finjo ficar ofendida.

— Como assim, "sozinha"? Posso fazer amizade com as pessoas aqui da rua que eu sempre achei esquisitas e chatas, e, além disso, vou ter a companhia da melhor pessoa do planeta...

Eu estava prestes a completar minha frase irônica quando Théonísio entra na sala, com as mãos um pouco molhadas por ter lavado a louça, e diz:

— Espero que você diga: "Théozinho".

Um barulho forçado de ânsia de vômito sai da minha garganta.

- Nunca! — contesto, apesar de que eu iria mesmo falar o nome dele para finalizar a brincadeira. — Eu ia dizer a companhia da Maria Fernanda, minha peixinha linda!

***

O resto da tarde transcorre de forma tranquila e alegre, com o nosso trio se provocando — sobretudo eu e o babaca — e rindo, procurando não pensar no calor absurdo, e, eu, na cena de mais cedo. Théonísio e eu acordamos que tiraríamos o restante do dia de "folga" e pegaríamos firme e compensaríamos amanhã.
    Quando o crepúsculo chega, tomo a liberdade de fazer um pouco de chá de hortelã quente para nós três, mesmo com o calor praticamente insuportável, e sentamos no chão da rua, com a porta de entrada da casa dos meus vizinhos escancarada atrás de nós. O pé de Lua está em cima do meu colo, Théonísio senta-se ao meu lado esquerdo e minha melhor amiga quase se deita completamente no asfalto, sem se importar em se sujar, afinal, iremos para o banho daqui a pouco.

— Achei que você não gostasse de chás, Théo — Lua sussurra, quebrando o silêncio que fazíamos enquanto observamos o "movimento" nas ruas e o céu ficando escuro.

— E não gosto — o babaca responde. — Mas queria saber que gosto tinha esse que a pulguinha fez. 'Tava parecendo uma água suja quando eu olhei.

Dou um soquinho no braço dele e vejo a caneca que ele empunha chacoalhar um pouco.

Lua solta um longo e profundo suspiro e fala, com os olhos brilhando quase tanto quanto as estrelas no céu:

— Ai, vocês dois...

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