Cinco anos depois
Estou sonhando com o supermercado P&B, uma mercearia que fica a poucos metros de distância da minha casa. Escuto os primeiros soquinhos no vidro da janela, mas continuo dormindo. Os socos passam a ter maior intensidade, e meus olhos se abrem sem que eu consinta em levantar. Entretanto, é o que faço. Ergo o corpo de forma mecânica e subo o vidro, que já não está completamente fechado por causa do calor absurdo das últimas noites, e, assim que cumpro minha tarefa, volto para a cama, colocando o lençol fino que me cobre até a cabeça.
— Não acredito que você ainda estava dormindo, Ester — Lua reclama, tirando os tênis pretos pesados que usa todos os dias. Ouço quando ela os taca para o extremo oposto do meu quarto. — Nós tínhamos combinado às dez e quinze, lembra?
Eu resmungo qualquer coisa, apenas para me defender, e pergunto que horas são. Paralelamente, escuto as pernas de Théonísio passarem pela janela, e os barulhos de esforço que ele faz para conseguir entrar. Como é um garoto solitário e com poucos amigos, segue a irmã aonde quer que ela vá, e é por isso que está aqui.
— São nove e cinquenta — Théonísio deixa escapar, ao passo que solta um som de dor. Lua deve ter dado um tapa nele por ter contado o horário de verdade.
— Já são dez horas — Lua garante. Mesmo debaixo das cobertas, sou capaz de apostar que ela está com aquele sorrisinho de convencimento que só convence ela mesma.
— A quadra nem abriu — eu falo, espreguiçando o corpo e esfregando os pés na cama. — Nossa, estou morrendo de sono.
— Quem mandou você ir dormir de madrugada — Luanete provoca. — Aposto que ficou falando com o Leonardo...
— Cala a boca! — jogo o travesseiro na direção em que ouço a voz dela. Leonardo é um garoto que conheci pelo Instagram e que mora perto daqui. Estamos de papinho, mas nem cogito gostar de alguém que nunca vi pessoalmente.
Abro os olhos e os esfrego com as costas das mãos. Apenas com a luz do dia atravessando o quarto, vislumbro os contornos da cabeça de Théonísio e digo, espantada:
— Você pintou o cabelo!
Théonísio está com a mesma cara de mau humor de sempre, mas ela parece estar mais acentuada nessa manhã. O cabelo, outrora escuro e com aquela franja caindo sobre os olhos, agora está descolorido, com a raiz morena. A franja, é claro, ainda está aqui, ressecada e teimosa, bloqueando a visão dele.
— Parabéns, você consegue enxergar — ele diz, carrancudo, fazendo os meus nervos se retesarem de raiva.
— E você consegue falar, calopsita — sussurro, devolvendo na mesma moeda e soltando ofensas gratuitas, que nem ele fez. Se bem que suspeito que "calopsita" não seja uma ofensa. Mas o que vale é a intenção.
— O que aconteceu com a trégua de vocês? — Lua questiona, ainda rindo das nossas provocações infantis e carregadas de verdade. — Vocês mal acordaram e já estão se atacando. Credo. Quanta toxicidade nesse ambiente. Vou trazer os meus incensos, amanhã.
— É mesmo — Théonísio fala para a irmã, amargo, mantendo os olhos cravados em mim. — E a sua amiguinha, aí, desistiu da trégua na primeira oportunidade. Ela não consegue ficar sem me ofender.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Lugar Ao Sol | ✔️
Teen FictionCalor, diversão, picolés... É assim que Ester pretende passar as suas férias de verão. Ela deseja estar junto da melhor amiga na praça da cidade, gastando todos os dias quentes de paz em cima dos patins. Entretanto, como nem tudo são flores, a garot...