"Quando eu te vejo, eu começo a sorrir"

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    Eu tiro o elástico do cabelo e sinto a brisa praticamente imperceptível contra as minhas bochechas. Théonísio está a poucos passos de mim, e no momento ele consegue parar de pé. Considero um grande feito, já que esse é só o primeiro dia de treinamento. O celular dele, com uma capinha transparente e um adesivo de skate, está metade para fora do bolso de sua calça jeans preta. O alto-falante do aparelho é incrivelmente alto, e Meu erro, dos Paralamas do sucesso, toca no aplicativo de músicas de Théonísio. Me atrapalho tentando arrumar o amarrador e o coloco na boca por um tempo, segurando meus cabelos para o alto e preparando para substituir o rabo de cavalo por um coque. A distração conforme prendo os fios vem, e me perco na letra da música, cantarolando e batendo com a ponta do pé, envolta e protegida pelo tênis, no chão.

    — Mesmo querendo, eu não vou me enganar — percebo que Théonísio apoia as mãos acima dos joelhos e fica com os olhos presos em mim. Eu enrubesço, e, assim que o coque está pronto, finjo que minha mão é um microfone e canto com uma entonação diferente, dando voltinhas rápidas e rindo, com um dedo da outra mão livre apontada diretamente para ele: — Eu conheço seus passos, eu vejo seus erros.

    Théonísio faz um grande esforço para se equilibrar e deixar o corpo ereto, então bate palmas e gargalha, a franja saindo do lugar e uma ruguinha no queixo.

    — Profundo, pulguinha — ele parece esquecer que me odeia, pois seus olhos faíscam feito fogos de artifício no ano novo. Enquanto ele fala, a música continua, ainda alta: "O meu erro foi crer que estar ao seu lado bastaria, ah meu Deus era tudo que eu queria". — Nós deveríamos formar uma banda.

    Espanto com o dorso da mão alguns mosquitinhos que me rodeiam, tentando não pensar nas marcas que ficarão na minha pele caso eles resolvam fazer do meu sangue sua refeição.

    — Idiota — abano a cabeça, mordendo o lado de dentro da boca para não sorrir.

    — Do que você me chamou? — diz ele, avançando bruscamente na minha direção, esquecendo que está usando os patins de Lua. Vejo o horror tomar o lugar do deboche em sua expressão, e Théonísio cai. Quer dizer, quase cai. Eu dou um grito ao perceber o que está por vir, mas não sou capaz de mover meus pés. Pelo contrário, só me dou conta de que já estamos caídos um por cima do outro — ele, em cima de mim, e eu, embaixo dele — quando, de fato, estamos no chão. Como no dia em que ganhei meus patins, no aniversário de 11 anos, a vergonha me atinge, mas passa rápido.
    Os cílios longos dele batem nas pálpebras várias vezes seguidas. Ele pisca mais que o normal e vejo suas íris cor de amêndoa percorrerem todo o meu rosto, pousando demoradamente na minha boca. Sinto a respiração entrecortada dele batendo no meu nariz. Por alguns segundos, ficamos nos encarando. Eu reparo nos seus fios desgrenhados de cabelo, e, em decorrência da nossa aproximação corporal, vislumbro uma pintinha mínima e discreta perto dos lábios dele.

    — Ester — a voz de Théonísio sai em uma súplica. Meu olhar fica preso no sinal recém descoberto próximo a boca dele. É raro que ele diga meu nome dessa forma. Ester. Sem brincadeiras, ridicularizações ou deboches.

    Caio na real, e me debato no chão feito um peixe fora d'água, querendo me livrar do peso e do cheiro dele. Nós nos odiamos. Repito isso vez após vez mentalmente até que o argumento perca a força e pareça não fazer sentido.

    — Théonísio, olha o que você fez! — minha voz não soa do jeito que eu gostaria, raivosa e irritada, mas sim indiferente. O corpo dele cede e desaba para o lado, sentando no chão e com as pernas esticadas. O rosto voltando a ficar da forma que conheço: carrancudo.

    — Desculpa — mais uma palavra que raramente o ouço dizer. O que está acontecendo conosco? Será que o calor do verão pode influenciar os cérebros das pessoas a tomar decisões idiotas e mudar pensamentos? Faço uma nota mental de pesquisar sobre isso em casa. — Talvez a gente devesse desistir. Acho que nunca vou aprender a andar de patins.

    Tenho vontade de gritar.

    — Você enlouqueceu? Minha mãe já deve ter feito nossas inscrições! — relembro, torcendo para que ela tenha feito, mesmo. Recordo que, após ler a mensagem de Théonísio com a ideia de Dirty Dancing, pedi para a minha mãe ligar para Janaína, a mulher responsável por organizar o concurso, e fazer nossas inscrições. — Pense no dinheiro.

    Ele me fita pelo que parecem ser horas, anos, décadas. Então, diz, desviando o olhar:

    — Estou pensando.

    Me ponho de pé e o ajudo a levantar.

***

    Théonísio e eu combinamos que só iríamos planejar nosso almoço quando ele fosse capaz de se movimentar "sozinho". Ou seja, assim que suas pernas se movessem de forma minimamente adequada, e ele apoiasse o braço em mim caso precisasse de ajuda. Isso ocorre muito mais cedo do que imaginávamos, antes das duas da tarde. Eu estava me preparando para comer depois das cinco.

    — Está sendo bem mais rápido do que eu esperava — digo com orgulho, sentada no chão e movendo minha cabeça de forma a acompanhá-lo deslizando perto de mim. — Sou uma ótima professora.

    Ele, que está de costas para mim, vira o rosto na minha direção e diz, mais alto que a música aleatória que toca no seu celular:

    — Eu que sou um ótimo aluno — então, Théonísio faz uma volta exagerada, literalmente caminhando com os patins nos pés, para poder voltar a deslizar. Agora, de frente para mim.

    — Aham — digo, com ironia. Presumo que a palavra que acabei de falar nem é ouvida por ele, tamanha é a gritaria proveniente na música que toca. Eu pronuncio sílaba por sílaba a seguir, para que ele possa fazer leitura labial e me entender: — Essa música não tem nada a ver com o que você está fazendo. Que caos.

    — Vou fazer uma playlist melhor quando chegar em casa — meu parceiro garante, arfando. — Acho que podemos ir almoçar, inclusive.

    — Tem certeza? — eu sorrio, sarcasticamente. — Ou você vai me derrubar outra vez?

    — Ha, ha — ele me fuzila com o olhar. — Você que estava no meu caminho, pulga.

    Minha mente — que ódio! — não sai do momento que dividimos mais cedo. A cena é revivida constantemente, sem que eu queira, e cada vez lembro de um detalhe novo: O calor queimando nossas peles, o peso dele sobre mim e o esforço que o panaca fez para não me machucar com seu corpo, o Ester expressado com necessidade. Fico com vergonha de mim por interpretar essa situação com uma importância tão grande. Os seres humanos fazem isso, no fim das contas: Levam acontecimentos pequenos a escalas grandiosas e absurdas.

    Por isso, quando estou caminhando, e ele, escorregando preguiçosamente os pés do meu lado (ele preferiu deixar os tênis escondidos atrás de uma árvore) — hora ou outra soltando um respiro de susto e correndo para agarrar meu braço, e a cena ameaça voltar, mergulho minha concentração em coisas pequenas: O farfalhar das folhas podres das árvores que restaram nessa rua esquecida, o barulho das rodinhas dos patins no chão, o jeito que minha pele afunda quando os dedos de Théonísio estão no meu braço. Não funciona tanto, afinal, os pensamentos voltam, mas não demoramos para chegar na casa da minha melhor amiga. Ainda bem.

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