Seis da tarde

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Sou uma medusa que nasceu "errado", sou diferente de todas as minhas irmãs. Sou a ovelha negra da família. Meus cabelos não os únicos que não são formados por cobras, mas continuo tendo o mesmo poder de transformar pessoas em pedra, infelizmente. Poderia ter sido ao contrário mas pelo menos estou viva. 

Minha casa é afastada da cidade, moro em um tipo de campo ou fazenda, mas sem animais. Os que tinham eu os transformei em pedras, pois é triste. Então só tem eu e o campo, eu sou totalmente só, minha família me abandonou porque era diferente das minhas irmãs, desde pequena fui comparada aos outros, mesmo sendo completamente diferente.

A única pessoa que me visita diariamente é o carteiro. Ele é o único que se preocupa comigo, ele é o único que sabe do meu transtorno de personalidade paranoide, que pra quem não sabe são pessoas que tem dificuldade em acreditar em tudo, estão sempre desconfiando de atitudes e isso resulta em pessoas emocionalmente desapegadas. Eu tenho isso e o único que sabe cuidar de mim é o carteiro. Quando ele vem aqui entregar cartas, fazemos um tipo de "brincadeira", ele escreve cartas para mim antes de chegar no meu campo, e eu faço o mesmo. Ele normalmente escreve me perguntando como foi meu dia e pergunta o que eu estou sentindo no momento em que eu leio a carta. 

Hoje ele não veio. Estranhei porque normalmente ele vem todos os dia exatamente as seis da tarde, as últimas entregas são as minhas, mas dessa vez ele não veio. Fui ensinada a me virar sozinha desde sempre, nunca tive ninguém que fizesse algo por mim a não ser entregar minhas cartas.

Ficar sentada na minha varanda observando o pôr do sol virou minha rotina a partir das seis da tarde. Ai ele chega e fica me observando de longe esperando eu me aproximar com meus óculos de sol, ele ri de mim porque normalmente eu sempre estou de chinelos floridos um vestido colorido e um óculos preto, coisas nada a ver, mas que ele adora.

Eu me sento na cadeira e começa a se passar uma, duas, três horas e nada dele aparecer. Será que ele me esqueceu? Encontrou outra medusa danificada? Outra pessoa que por acaso mora em um campo sem ninguém por perto? 

Ele normalmente vinha e ficava horas aqui comigo. Agora as horas que ele ficava aqui comigo começaram a se transformar em memórias que nunca mais aconteceram. Fico pensando se ele foi uma imagem que meus próprios neurônios criaram para que não me deixassem só. 

Um, dois, três dias se passaram e nada. Mandei várias mensagens a ele, mas nada aconteceu também. Até que exatamente no dia 16 de setembro ele aparece exatamente as seis horas em uma tarde chuvosa na minha cerca branca, a fora de minha casa. Pego meus óculos e vou atrás dele questioná-lo. 

- Onde você estava? Estive preocupada contigo carteiro.- Digo em extrema curiosidade.

- Não da tempo de explicar! Você tem algum porão por aqui? Preciso me esconder!- Ele diz gritando e olhando para os lados com os olhos arregalados e um medo constante no olhar.

- Porão eu não tenho, mas eu conheço um lugar.- Eu começo a caminhar constantemente e ele vem atrás de mim. 

Vou em direção a um grande lago que tem atrás da minha casa, junto a ele entro em um edifício de madeira no centro do lago, a casa está caindo aos pedaços, mas conseguimos entrar. Eu me sento em um dos cantos e ele no outro, assim dividimos o peso e não terá chances da casa desmoronar.

- Preciso que você fique aqui até as coisas se acalmarem. Preciso de você e não quero te perder!- Ele grita pois o barulho da tempestade falam mais alto que nós.

- Por que tudo isso está acontecendo? Não estou entendendo nada!- Digo o encarando.

- Depois te explico melhor, estou com medo deles!- Ele diz á beira das lágrimas.

- Me fala, medo de quem?

- Deles!- Ele aponta para a ponta, eu não enxergava absolutamente nada.

- Deles? Não tem ninguém ali!

- Tenho medo do que eu enxergo, não aguento mais enxergar pessoas que não estão mais aqui, ando rodeado por todos! Queria ser que nem você! Você sempre esteve só!- Ele diz aos gritos, o mesmo começa a tremer e a bater os dentes de frio. 

- Que? como você consegue ver pessoas mortas?!- Estou assustada com o que eu acabei de ouvir.

- Eles ficam me observando a noite toda, não tenho mais privacidade, ás vezes uns até conversam comigo!- Ele deita em posição fetal e derrama-se em lágrimas.

- Venha aqui!- Peço a ele, mas nada do mesmo se mexer. 

Vou em direção a ele, me sento ao seu lado e no mesmo instante a casa começa a se mexer, de um lado para o outro.

- Eles estão aqui, eu disse!- Ele começa a gritar com as mãos nos ouvidos.

Eu tiros as mãos dele dos ouvidos e sussurro a ele, se o mesmo tinha certeza do que queria.

- Tenho! Não aguento mais viver assim!- Ele me abraça e faz daquele abraço seu adeus.

- Posso te falar uma coisa?- Ele sussurra em meu ouvindo enquanto me abraça. - Antes que você faça aquilo comigo, quero que você me prometa uma coisa, tudo bem?- Murmuro um sim e ele prossegue. - Quero que você saiba, que nunca estará sozinha, mesmo que você ache que estará, minha alma virá aqui todos os dias exatamente as seis da tarde, eu estarei sentado contigo na sua varanda conversando com você e comendo uns dos seus deliciosos bolinhos de chuva. Nunca te deixarei, você é a única pessoa que afastava todos esses defuntos que eu conseguia enxergar. Queria que você soubesse o quanto eu te amo, mesmo não sendo nessa vida ainda, vou te levar em uma das minhas cartas que escrevi para você, e a única carta que sobrou para mim te entregar é a que está guardada em meu coração, e essa você sempre teve, só nunca leu, mas agora você vai ter todo o tempo da sua vida para lê-la, mesmo eu virando pedra, meu coração continua sendo de ouro esculpido pelas mãos da melhor e mais bonita medusa que conheço.- Ao fim dessa linda declaração eu o abraço ainda mais forte e começo a chorar. 

Eu pego em sua mão e o levanto, imediatamente a casa em que estávamos começa a desmoronar e caímos no lago, ele era mais fundo do que parecia para nós dois. Eu nunca soube nadar, comecei a entrar em pânico, não sabia o que fazer com os braços e muito menos com as pernas. 

Consegui abrir os olhos e o observei, ele estava ao meu lado, finalmente pude observá-lo sob tons coloridos, sem ser preto nem branco, ele tem cabelos enrolados e pretos, e o tom de pele escura, o lago estava claro demais, a lua estava iluminando nós dois. Ele me olhou , mas não fixou seus olhos ao meu, ele nadou até o meu abraço, e olhou em meus olhos pela primeira e última vez, e enfim o vi virar pedra. E realmente talvez não seja nessa vida, mas na próxima sei que encontrarei meu carteiro e ele a medusa dos cabelos negros, no mesmo lugar de sempre, em minha varanda as seis da tarde.









Transtorno de personalidade paranoide - pessoas com esse transtorno tendem a desconfiar dos outros e achar que vão ser enganadas. Por causa disso, elas podem ser hostis ou emocionalmente desapegadas.

PlatônicoOnde histórias criam vida. Descubra agora