a carta

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Meu amor
Seguindo os clichês de filmes americanos, te deixo essa carta.
Não quero que lembre de mim como um corpo perdendo a vida enquanto você gera uma. Parece egoísta eu roubar esse momento de você. Lembre de mim ao ler poemas cafonas sobre o amor, ao ver filmes de romance de baixo orçamento na televisão e ao ler um livro no aeroporto. Lembre de mim quando olhar o nosso bebê correndo pelo quintal e tropeçando na grama. Me esqueça quando necessário. Sei que vai contar boas histórias para o nosso filho, nossas histórias. Lembre de mim sempre que quiser, e não o faça, se isso te causar muita dor. Fico feliz por você não ter me pedido para ficar. Seria ainda mais doloroso te negar isso.

Minha Alicia. Sei que você é uma mulher difícil, muito inteligente e perspicaz, que de tudo faria pelo refúgio que se tornou o seu trabalho. Sei que você tem limites muito diferentes dos meus, muito mais profundos. Conheço-a há 20 anos e ainda me surpreendo com suas jogadas na polícia. Não deixe isso tomar conta de você. Não chegue ao seu limite; temo que ele seja fundo demais, a ponto de você não conseguir enxergar a luz no final. Por favor, eu te peço, como o homem que a ama e a viu cometer todos os tipos de atrocidades (principalmente tortura psicológica, devo destacar, você é especialmente boa nisso) não chegue ao seu limite. Não faça o que vai querer fazer quando eu morrer. Não busque um culpado; fuja da dor, se necessário, assistindo a televisão e faltando as consultas ao obstetra de vez em quando. Nada muito além disso. Não aceite nenhum caso. Não arrisque a sua sanidade tentando me esquecer. Você o fará, uma hora ou outra. Mas talvez o preço seja caro demais, meu amor. Eu sei que fui o que te motivou a ficar no lugar esses anos. Logo não estarei mais aqui, mas nosso bebê estará, te esperando voltar para casa. Então olhe para ele. Pense no seu cabelinho. Se pergunte se vai se parecer mais comigo ou com você, se vai ser um menino ou uma menina. E não faça o que vai desejar fazer. Não estou em posição de te pedir nada. Também não me imagino perdendo você, tampouco desse jeito deplorável no qual eu a deixo, tão rápido e tão dolorosamente. Me perdoe por isso. E, se puder, se você conseguir suportar a dor na nossa casa, não vá para o trabalho. Confio em você, e a amarei, sempre. Você me deu a melhor vida que eu podia viver. Vou escrever uma carta para o nosso bebê também, e espero que vocês leiam juntos, quando ele já tiver idade. Amo você, minha Alicia, meu amor. Sei que vai cuidar do que é nosso. Você não tem ideia da dor que eu sinto ao deixá-la agora. Daria tudo para vê-los juntos além dos meus sonhos e devaneios.

O meu amor por você foi feito para as grandes telas de cinema, assim como você. Seus olhos de raposa e cabelos vermelhos foram feitos para grandes multidões admirarem. Amo sua beleza e inteligência. Cada pedaço seu, até os piores e mais imperfeitos, criaram uma mulher que eu sei que vai amar o meu filho por mim. Você vai fazê-lo ser uma criança muito feliz, assim como me fez feliz. Obrigada pelos nossos 20 anos juntos. Lamento não poder te dar mais 20.

Do seu marido, Germán, que mesmo de olhos fechados, se tranquilizará com os seus, que permanecerão abertos.

Quando nascem as flores *finalizada* 2021Onde histórias criam vida. Descubra agora