Capítulo Dois

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— Não acredito que você passou a noite fora de casa, de novo!

Apoiei a cabeça nas mãos. Estava com uma ressaca terrível. Minha cabeça parecia prestes a explodir e minha mãe não parava de berrar.

— Você disse que estaria de volta para o jantar e, ao invés disso, ficou vadiando com aqueles turistas bêbados — ela continuou.

— Pior que isso. Ainda decidiu nos humilhar, novamente, se pegando por aí com aquele rapaz — meu pai destacou o "rapaz" como se quisesse usar algum outro nome. Alguma coisa racista, sem sombra de dúvidas. Ele me obrigou a olhar para ele com um puxão no queixo — Pensa que as pessoas não veem essas coisas? Pensou que isso não chegaria a nós? Sabe as coisas que eu e sua mãe somos obrigados a ouvir por conta do seu comportamento depravado?

— Eu não me importo com o que falam e pensam de mim — murmurei puxando o rosto da mão dele. Meu pai soltou uma risada sarcástica.

— É claro que não se importa! Sua mente foi corrompida por esses turistas vagabundos. Se não fosse por eles, você ainda seria normal.

Essa foi a gota d'água para mim. Me levantei e bati a mão contra a mesa.

— Eu sou normal. E eu sempre fui assim. Eu nasci assim!

— Isso é um absurdo, Caio! Deus não...— interrompi o falatório estridente da minha mãe. Não aguentava mais aquela conversa sobre a vontade de Deus.

— Deus, mãe, nos deu o livre arbítrio, para fazermos e sermos quem quisermos! E se Ele quiser me punir por querer ser quem sou, então não é o Deus benevolente que todos dizem — minha mãe me encarou em silêncio, provavelmente porque não costumava respondê-los. Eu não conseguia mais conter a raiva — Quer saber? Na verdade, acho que Ele não deve ser benevolente mesmo! Considerando o quanto eu já sofri nesse lugar infernal e já implorei a Ele por uma salvação, e Ele nunca me atendeu. Ou, quem sabe, minha sentença de morte deve ter sido a resposta dEle, já que é melhor morrer do que ficar aqui! — saí pisando forte e ignorei o rosto pálido da minha mãe, em contraste com o rosto vermelho furioso já quase roxo do meu pai.

Passei uma hora arrumando minhas coisas, separando coisas que iriam para o lixo ou que iriam para doação. Não fiz nenhuma mala para mim, afinal o trajeto seria curto e o destino era apenas a morte. Durante esse tempo, deixei de ouvir todos os insultos voltados para mim do lado de fora do meu quarto. Quando acabei, saí de casa sem dizer uma palavra. Também não recebi nenhuma.

Fiquei caminhando sem um rumo exato até me ver de pé em frente à estátua de Santo Antônio, o padroeiro da cidade. A estátua ficava bem no centro do município, de frente com a igreja. Passei as mãos pelos pés do santo, em um pedido silencioso de ajuda inconsciente.

Me sentei em um dos bancos da praça e me limitei a ficar vendo o movimento das pessoas

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Me sentei em um dos bancos da praça e me limitei a ficar vendo o movimento das pessoas. A diferença notável entre as posturas, roupas e costumes dos moradores em contraste com os dos nossos visitantes. Os turistas eram tão coloridos, animados e cheios de vida. Imaginava como deveria ser morar numa cidade repleta de pessoas assim constantemente.

O sol já estava se pondo quando decidi levantar para comprar algo para comer. Queria poder ver Renan e Tatiana, sim, Renan havia me lembrado o nome dela ontem à noite. Queria só conversar e rir com eles. E esquecer por alguns minutos o que aconteceria essa noite.

Ainda podia me lembrar do primeiro sacrifício ao demônio. Depois dos assassinatos misteriosos, o prefeito, o padre e mais alguns influentes da cidade anunciaram que conseguiram barganhar um tratado de paz. Ainda nem sabíamos que estávamos lidando com um ser sobrenatural. Mas eles, de alguma forma, souberam e conseguiram essa "solução". Todos da cidade, acreditaram ser uma solução temporária. Mas me parecia bem permanente até agora.

Morar em uma cidade sitiada por um demônio raivoso combinava completamente com meu nível de azar na vida. Mas, surpreendentemente, por algum motivo que não entendia, o demônio vinha respeitando o tratado durante todo esse tempo. A cada quinzena mandávamos um sacrifício a ele. O sacrifício obrigatoriamente tinha que ser um residente da cidade, eram os termos do demônio. Então a ideia de começar um serviço de delivery de turistas para ele, caiu por terra. E em troca, ele não mataria mais ninguém da cidade e deixaria os visitantes em segurança.

É claro que as pessoas mais mesquinhas e poderosas decidiram se aproveitar da situação para propor um "tribunal" mórbido para votarem quem seria o próximo lanche noturno do nosso bicho papão.

Convenientemente, todos que se indispunham com alguém do júri, ou que incomodassem o senso do politicamente correto coletivo (leia-se, eu) eram condenados como oferendas. E um por um, duas vezes por mês, um na lua cheia e o outro na lua nova, eram enviados em uma caminhada de uns vinte minutos até uma clareira no meio da floresta. O que acontecia com eles era bastante auto explicativo, já que ninguém nunca voltou.

Os sinos da igreja me sobressaltaram. Fechei os olhos e respirei fundo.

Chegou a hora.

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