Eu me debrucei em lágrimas, inspirava o ar profundamente e soltava em arcadas de muito soluço pelo que me acontecera. O cheiro pútrido estava invadindo todo o local, pessoas ao monte, caíam falecidas, outras muito doentes. Lá fora já não era um local seguro, e eu pensei estar protegida dentro de casa.
Minha mãe me havia pedido um copo com água fresca, agarrei o vaso de barro esculpido por meu avô a vários anos. Coloquei sobre o copo de mesmo material e olhei derradeiramente para fora através de uma lasca quebrada, que fazia uma fresta na janela que continuávamos a deixar fechada. Não haviam pessoas vivas lá fora, estava no meio da noite, e a lua cheia iluminava o local.
Eu sou de estatura mediana, os olhos castanhos claros, amendoados, os cabelos negros desgrenhados, a pele morena clara, com uma ligeira camada de poeira. O abastecimento de água estava prejudicado em Marselha, cidade da França, no ano de 1721, na qual vivemos. Com a vinda da praga, e os locais de busca de água isolados e contidos pelas autoridades, quase não tínhamos água para tomar banho, era apenas para tomar e cozer os alimentos.
De longe era possível visualizar homens vestido em seus medonhos trajes de Lorme, com as máscaras bem ajustadas para se proteger. Eram médicos em sua maioria, já que sabemos que muitos dos prestigiados doutores não queriam enfrentar a peste que nos assolava, o governo então mandava civis comuns que precisavam de dinheiro para sobreviver. Ver os médicos não era um bom sinal, como nem todos possuíam a ciência do curar, eles vinham apenas para buscar os corpos que morreram pela praga.
Meu corpo tremelicou e eu arrepiei, não queria estar pensando nessa situação. Mas mamãe estava demasiadamente fraca, eu conseguia ludibriar as rondas que eram feitas pelos agentes de saúde locais, porque tinha fé que ela viesse a melhorar.
Balancei a cabeça diante do pensamento e tratei de levar a ela um copo com água. Contudo quando a vi, meu coração disparou, senti que minha boca ficava seca, e meus pés não conseguiam se mover.
Os olhos dela estavam semifechados, os lábios ligeiramente abertos, e o braço direito caído para além dos limites de cama. Eu sabia que minha mãe já não estava entre nós. E mesmo tendo a certeza que ela estava doente, eu não acreditei nem por um segundo que ela fosse sucumbir.
Deixei o copo com água cair no piso de chão batido, espalhando o líquido e fazendo uma poça pelos locais que estavam em desnível. Minha primeira reação foi querer abraça-la e suplicar a Deus por seu retorno, que ela ainda não me abandonasse.
Nós havíamos perdido meu pai desde muita tenra idade, já que ele nos abandonou assim que eu fui implantada no ventre de minha mãe. Ela nunca me deu detalhes de quem seria essa pessoa, e confesso que nunca me havia interessado, tínhamos uma a outra e isso já era o bastante.
Eu freei meus impulsos, não poderia tocá-la. Meu olhar correu por todo seu corpo. Os bubões saltados, minando sangue e pus por toda a lateral da perna esquerda, as pontas dos dedos das mãos e metade dos dedos dos pés enegrecidos pela potente necrose.
Foi então que meu choro se tornou profuso, soluçante. O que eu faria com minha mãe em casa? Como iria enterra-la? O que os médicos fariam comigo? Já que eu estaria dividindo o mesmo local que uma enferma. Eles me isolariam. E é de senso comum que todos os isolados, acabam contraindo a doença de outra pessoa isolada, e então termina por falecer.
Eu não queria morrer, mas também não queria ter que viver sem minha mãe. Me encostei na viga de sustentação da casa, trouxe meus joelhos para mais perto de meu peito, enlacei com meus braços e chorei, as lágrimas caíam em torrenciais. Eu havia perdido o meu propósito, estava perdida num umbral entre viver e desistir da vida.
Eu nem sei quantas horas se passaram. Eu não estava tendo nenhum cuidado, não amarrava o pano no meu rosto, não tocava em minha mãe, e também não saia do lugar.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Praga de Marselha
Mystery / ThrillerOlá a todos... venho compartilhar com vocês um novo projeto, é uma história de romance e terror, ela se passa na cidade de Marselha de 1721, no auge da praga que dizimou mais da metade da população. O livro está em construção, e estou postando ele d...