XXVIII. A corrente do relógio

29 6 0
                                    

 M. Paul Emanuel era extremamente sensível ao aborrecimento causado por uma interrupção, devida a quaisquer causas, durante suas aulas: passar por sua classe em tais circunstâncias era considerado pelas professoras e pelas alunas da escola, individualmente e em conjunto, algo extremamente arriscado.

A própria Madame Beck, se forçada a dar esse passo, iria "passar voando", segurando as saias, e cuidadosamente ladeando o temível estrade, como um navio que teme os recifes. Quanto a Rosine, a moça da portaria (sobre quem, a cada meia hora, recaía a temível função de ir pegar alunas bem do centro de uma ou outra das turmas para que elas tivessem suas aulas de música no oratório, no salon grande ou no pequeno, na salle-à-manger ou em qualquer outro lugar onde se encontrasse o piano), ela, em sua segunda ou terceira tentativa, frequentemente ficava quase sem palavras por causa do excesso de consternação: um sentimento inspirado pelos olhares indizíveis dirigidos a ela através de um par de óculos lampejantes.

Certa manhã eu estava sentada no carré, atarefada com um bordado que uma das alunas havia começado mas estava demorando para terminar, e enquanto meus dedos trabalhavam, meus ouvidos se regalavam ao escutar os crescendos e as cadências de uma voz arengando na sala vizinha, em tons que se avolumavam momentaneamente mais inquietos, mais ameaçadoramente variados. Havia uma parede divisória sólida e boa entre mim e a tempestade incipiente, bem como um modo fácil de fuga através da porta envidraçada para o pátio, caso a tempestade se dirigisse para o carré; então, receio que eu mais me divertisse que sentisse medo desses sintomas que se intensificavam. A pobre Rosine não estava a salvo: quatro vezes naquela bendita manhã ela havia trilhado aquele caminho arriscado; e agora, pela quinta vez, era sua perigosa tarefa arrebatar, por assim dizer, o tição ao incêndio: uma aluna de sob as fuças de M. Paul.

— Mon Dieu! Mon Dieu! — exclamou ela. — Que vais-je devenir? Monsieur va me tuer, je suis sûre; car il est d'une colère!

Fortalecida pela coragem nascida do desespero, ela abriu a porta.

— Mademoiselle La Malle au piano! — foi a exclamação dela.

Antes que ela pudesse bater em retirada com segurança, ou fechar a porta, a voz se manifestou:

— Dès ce moment la classe est défendue! La première qui ouvrira cette porte, ou passera par cette division, sera pendue... fut-ce Madame Beck elle-même!

Dez minutos não se haviam passado desde a promulgação desse decreto, quando as pantoufles francesas de Rosine foram ouvidas uma vez mais se arrastando ao longo do corredor.

— Mademoiselle — disse ela — eu não iria àquela sala agora nem para ganhar uma moeda de cinco francos: as lunetas de Monsieur são terríveis mesmo; e está aqui um commissionaire que veio com uma mensagem do Athénée. Eu disse para Madame Beck que eu não ouso entregá-la, e ela disse que eu devo encarregar a senhorita da tarefa.

— Eu? Não, isso é um absurdo! Não faz parte dos meus serviços. Vamos, vamos, Rosine! Carregue sua própria cruz. Seja valente... ataque uma vez mais!

— Eu, Mademoiselle? Impossível! Cinco vezes eu passei por ele hoje. Madame precisava mesmo era contratar um gendarme para fazer esse serviço. Ouf! Je n'en puis plus!

— Bah! Você não é mais que uma covarde. Qual é a mensagem?

— Do tipo exato com que Monsieur menos gosta de ser incomodado: um chamado urgente para ir direto ao Athénée, pois está lá um visitante oficial... inspetor... eu nem sei o quê... que acabou de chegar, e Monsieur tem de se encontrar com ele: a senhorita sabe como ele odeia um ter de .

Sim, eu sabia muito bem disso. O impaciente homenzinho detestava esporas ou limites: ele seguramente se revoltaria contra qualquer coisa que fosse urgente ou compulsória. Entretanto, aceitei a responsabilidade; não, certamente, sem temor, mas o temor se misturou com outros sentimentos, entre eles a curiosidade. Abri a porta, entrei, fechei a porta às minhas costas com tanta rapidez e discrição quanto uma mão insegura permitisse; pois ser vagarosa ou alvoroçada, fazer chacoalhar um ferrolho, ou deixar uma porta entreaberta eram agravantes de um crime que, com frequência, eram mais desastrosos em seu resultado que o crime principal. E lá fiquei eu então, e lá ele estava sentado; seu estado de espírito era visivelmente ruim, quase no pior ponto possível; estivera dando uma aula de aritmética (pois ele dava aulas sobre todo e qualquer assunto que passasse pela sua cabeça) e a aritmética, sendo um tema árido, invariavelmente não lhe caía bem: não havia uma aluna que não tremesse quando ele falava de números. Ele estava sentado, recurvado sobre a mesa: erguer o olhar ao ouvir alguém entrando, na ocorrência de uma direta violação da sua vontade e da sua ordem, era um esforço que ele, no momento, não tinha condição de se obrigar a fazer. E foi muito bom: assim eu ganhei tempo para caminhar através da longa sala; e se adequava muito bem às minhas predisposições particulares me confrontar com explosão de raiva como a dele de perto, a ter de suportar sua ameaça a distância.

Villette (1853)Onde histórias criam vida. Descubra agora