XVI. Moito tempo atrás

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 Para onde foi minha alma durante aquele desmaio eu não saberia dizer. O que quer que ela tenha visto, ou para onde quer que ela tenha viajado em seu transe naquela estranha noite ela manteve como seu segredo, jamais sussurrando uma palavra para a Memória, e desconcertando a imaginação por meio de um silêncio indissolúvel. Ela pode ter ascendido, e se ter deparado com seu lar eterno, esperando a permissão para descansar então, e imaginando que sua dolorosa união com a matéria finalmente se havia desfeito. Enquanto ela assim imaginava, um anjo pode ter-lhe avisado para evitar o limiar do céu, e, conduzindo-a chorosa para baixo, tê-la amarrado, uma vez mais, toda trêmula e relutante, àquele pobre corpo, frio e emaciado, de cuja companhia ela havia ficado mais que cansada.

Eu sei que ela reentrou em sua prisão em meio à dor, com relutância, com uma lamúria e um prolongado estremecimento. Foi difícil reconciliar os companheiros divorciados, Espírito e Substância: eles se cumprimentaram, não com um abraço, mas com um violento tipo de luta. O sentido da visão que retornava se apoderou de mim, rubro, como se nadasse em sangue; a audição interrompida retornou ruidosa, como o trovão, a consciência reviveu no temor: eu me sentei amedrontada, perguntando-me em que região, entre quais criaturas estranhas eu estava despertando. A princípio, não reconheci nada das coisas para as quais olhava: uma parede não era uma parede; uma lamparina não era uma lamparina. Eu poderia ter compreendido o que chamamos de fantasma, assim como compreendia o mais comum dos objetos: o que é outro modo de dizer que tudo em que meus olhos se detinham parecia espectral. Mas as faculdades logo se acomodaram cada qual em seu lugar; a máquina da vida retomou seu trabalho costumeiro e regular.

Mesmo assim, eu não sabia onde me encontrava; apenas com o passar do tempo vi que havia sido removida do local onde caíra: eu não estava deitada em nenhuma escada de pórtico; a noite e a tempestade haviam sido isoladas por paredes, janelas e teto. Para alguma casa eu havia sido carregada, mas qual casa?

Eu só conseguia pensar no pensionnat na Rue Fossette. Ainda semiadormecida, eu me esforcei para descobrir em qual quarto eles me haviam colocado; se no grande dormitório, ou em um dos pequenos. Eu estava perplexa, porque não conseguia conciliar as partes da mobília que eu via com o conhecimento que tinha de qualquer desses cômodos. Estavam ausentes as camas brancas desocupadas e a longa fila de grandes janelas. "Com certeza", pensei, "não foi para o quarto da própria Madame Beck que eles me carregaram!". Então meus olhos se depararam com uma poltrona coberta de damasco azul. Outras cadeiras, com estofamento semelhante, foram percebidas por mim aos poucos; e finalmente eu me compenetrei da ideia de uma agradável sala de estar, com um belo fogo em uma lareira imaculada, um carpete no qual arabescos de um tom de azul vivo davam vida a um fundo de tons fulvos; paredes claras nas quais uma delicada mas infinita guirlanda de miosótis azuis corria entrelaçada e aturdida em meio a um sem fim de folhas e gavinhas douradas. Um espelho dourado ocupava o espaço entre duas janelas com amplas cortinas de damasco azul. Nesse espelho eu me vi deitada, não em uma cama, mas em um sofá. Eu tinha uma aparência espectral; meus olhos maiores e mais fundos, meu cabelo, mais escuro que o natural, contrastando com minha face magra e pálida. Ficava claro, não apenas por causa da mobília, mas da localização das janelas, das portas e da lareira, que aquele era um cômodo desconhecido em uma casa desconhecida.

Quase tão óbvio era o fato de que meu cérebro ainda não estava acomodado; pois, enquanto eu olhava para a poltrona azul, ela parecia ficar cada vez mais familiar; bem como uma otomana, e não com menor intensidade a mesa de centro redonda, com uma toalha azul margeada com folhagens nas cores do outono; e, acima de tudo, dois pequenos escabelos com coberturas trabalhadas, e uma pequena cadeira com moldura de ébano, com o assento e o encosto também forrados com conjuntos de flores brilhantes sobre fundo escuro.

Assombrada com tais coisas, explorei um pouco mais. É estranho dizer, velhos conhecidos estavam todos ao meu redor, e o "moito tempo atrás" sorria para mim de todos os cantos. Havia duas miniaturas ovais sobre a cornija, cujas pérolas sobre as altas e empoadas "cabeças" eu conhecia de cor; o veludo que circundava as gargantas brancas; o ondejar dos amplos lenços de musselina: o padrão dos babados de rendas nas mangas. Sobre a prateleira da lareira havia dois vasos de porcelana, algumas relíquias de um diminuto serviço de chá, tão liso quanto esmalte e fino como casca de ovo, e um ornamento central branco, um grupo clássico em alabastro, conservado sob uma redoma de vidro. Eu poderia falar sobre os detalhes de todas essas coisas, enumerado as falhas ou os lascados, como qualquer clairvoyante. Acima de tudo, havia um par de biombos portáteis, com elaborados desenhos com acabamento semelhante a entalhes; meus olhos ficaram doloridos ao olhá-los de novo, recordando horas em que eles haviam seguido, traço após traço, e toque após toque, um tedioso, frágil e meticuloso lápis que uma menina em idade escolar segurava naqueles dedos agora tão cadavéricos.

Villette (1853)Onde histórias criam vida. Descubra agora