Capítulo 2 - Combustão Espontânea

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Terça-feira, onze e vinte da manhã. Aula de química. Eu estava sentada em minha carteira com os olhos fixos em um prego pouco acima da lousa. A professora explicava algo sobre ponto de ebulição, ou fusão, eu não sabia ao certo, já que não conseguia ouvir o que ela dizia. Quero dizer, eu até ouvia o que ela falava, mas palavra alguma entrava em minha mente.

O incidente da noite anterior concentrava toda minha atenção. Eu estava preocupada. Cada vez que o Monstro aparecia, eu fazia algo mais destrutivo e perigoso contra mim mesma...E aquilo me afligia. O que vem a seguir?, eu me indagava.

Minha bicicleta estava praticamente destruída na bicicletaria do Seu Luís, meus braços estavam quase completamente enfaixados por debaixo da minha jaqueta e havia um curativo adesivo nada discreto em minha testa.

Os incidentes estavam ficando piores, assim como a situação em minha casa. E eu não sabia até quando aguentaria aquilo, ainda assim, eu continuaria aguentando...

A verdade era que meu pai era um psicopata agressivo, e minha mãe não parecia se importar com aquilo. No entanto, além de agressivo e psicopata, ele era policial e tinha porte de arma; arma essa que ele fazia questão de limpar na mesa da cozinha  quando minha mãe fazia algo que ele não aprovava.

Arma com a qual eu já havia me imaginado centenas de vezes estourando a cabeça dele e a minha, para no momento seguinte entrar em um estado de negação e culpa por estar cogitando aquelas coisas... Mas, logo depois, voltava a cogitar.

Eu estava presa em um maldito ciclo de desespero, ódio e culpa. Incessante. Intransmutável. E eu não sabia para onde aquilo iria me levar.

O pior de tudo era que minha mãe amava aquele desgraçado e acreditava que um dia ele poderia mudar. Mas havia anos que aquilo acontecia. Anos. Eu não tinha mais esperanças.

Quando eu era pequena, eles disfarçavam, não me deixavam ver as brigas. Discutiam quando eu estava na escola. Ainda assim, inúmeras vezes eu os ouvi gritando um com o outro antes de entrar em casa. No começo, minha mãe revidava, porém, depois de alguns anos, só a voz do meu pai se propagava pelos cômodos e escapava pelas janelas.

Depois que eu fiz doze anos, eles decidiram parar de esconder ou se cansaram, pois não se importavam mais com o que eu ia pensar. Não se importaram com o que iria acontecer se eu crescesse assistindo a tudo aquilo. A todo aquele ódio e violência, a toda aquela dor e destruição. Não se importavam...

De repente, risadas baixas invadiram meus pensamentos e me tragaram de volta para a sala de aula. Eu olhei para o lado e vi Rebeca virada para trás, cochichando com suas duas amigas e rindo de algo em meu rosto.

Rebeca. Eu costumava conhecê-la. E pior, eu costumava ser sua amiga. Por volta dos quatorze anos, quando a amizade ainda era algo de relevância em minha vida. Mas nos anos seguintes tudo foi esfriando e esmorecendo à minha volta. Eu não conseguia me agarrar a mais nada. Inclusive a ela. E Rebeca pareceu se ofender com o término de nossa amizade. Como se a minha falta de interesse em manter contato fosse culpa dela ou estivesse diretamente ligada a ela, e por isso passou a me odiar.

Mas não era. E o fato de ela vir remoendo esse afastamento por tantos anos e deixando claro que ainda me odiava sempre que possível só me fazia ter certeza de que eu havia tomado a decisão certa. As pessoas me decepcionavam. Elas eram mesquinhas e arrogantes com tanta facilidade e impenitência que me angustiava.

Por aquele motivo eu havia me afastado delas...

Ao pensar aquilo, o sinal tocou. Todos começaram a se levantar. A próxima e última aula do dia era de Educação Física. Sem pressa, eu fui juntando minhas coisas e guardando-as na mochila. Quando me levantei e fui saindo da sala, Rebeca se levantou com seus cabelos longos, lisos e negros e sua pele morena radiante, e zombou:

O Mundo Devorou Susana (Finalizado)Onde histórias criam vida. Descubra agora