13 - A VIAGEM

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Eu não sabia como eu ficaria depois de cem anos sem usar aquele traje, mas o coloquei mesmo assim, com Charlie e Caylen de costas para mim em meu quarto.

Foi difícil e doloroso colocar a armadura que eu usei durante a guerra, mas foi necessário. Ela me protegeria contra o frio. No mesmo buraco onde estava a armadura, encontrei também minhas botas forradas com lã, que eu também havia usado na guerra. Charlie levou meu lençol para baixo e todos entraram em suas respectivas cavernas para verem o que tinham de comida para levarmos. Infelizmente era pouco e mesmo racionando a comida entre os cinquenta e seis animais, ainda assim precisaríamos de mais em breve. Pedi que os ursos se revezassem para carregar a sacola de alimentos improvisada nas costas e eles concordaram sem hesitar. Eu confiava neles o suficiente para acreditar que eles não fugiriam com a comida, nem comeriam quando achassem que não tinha ninguém olhando.

Era um risco sairmos de onde estávamos, tanto quanto era um risco ficar ali e depender da sorte. Eu já havia tomado a minha decisão e não voltaria atrás.

Duas horas depois, todos estávamos de frente para a floresta com a montanha atrás de nós. Estávamos prontos para deixar o lugar que havia sido o nosso lar por um século, mas dar aquele primeiro passo era difícil. Se todos iriam andar, eu iria andar também, então me recusei a subir nas costas de Elsie ou de Jeremy.

Em pé, na frente de todo o grupo, eu dei aquele primeiro passo e depois mais um. Um a um todos começaram a me seguir. Caylen estava do meu lado direito e Charlie andava do meu lado esquerdo. Atrás de nós estavam Jeremy e Elsie e atrás deles vinham os demais.

Éramos um grupo forte e não importasse o que encontraríamos no caminho, nada poderia nos deter ou vencer.

Horas se passaram. Ficamos com sede, mas não tínhamos água para beber, a não ser que colocássemos neve na boca e esperássemos derreter. O lago que encontramos estava congelado. Tão denso que poderíamos andar sobre ele.

Esperamos mais tempo até parar para comer. Usei uma pedra afiada e pontiaguda para cortar as frutas ao meio e dividir entre meu povo. As frutas suculentas diminuíam um pouco a sede. Eu só comi após todos já terem comido e após eu ter contado as frutas para saber se daria para o próximo dia. Sim, seria melhor comer uma vez ao dia para que não acabasse rápido. Tínhamos que ser cuidadosos.

Após um breve momento de descanso, todos nos colocamos em pé.

- Acho que será melhor se andarmos mais depressa, para esquentar um pouco o corpo – disse Jeremy ao meu lado. Meus lábios estavam levemente roxos com o frio e era onde seus olhos estavam.

- Eu não consigo andar mais rápido que isso.

O fato de eu estar usando armadura e estar morrendo do frio me impedia de andar mais rápido.

- Então suba nas minhas costas.

- A Armadura irá machucá-lo – falei, tentando cruzar os braços sobre o peito.

- Eu não me importo. Suba – Jeremy disse com uma voz autoritária.

- Faça isso, Az. Por mim e por nosso povo – pediu Caylen, escutando toda a nossa conversa. Olhei em seus olhos verdes e vi que ele também estava com frio por estar se movendo tão devagar. Correr faria com que o coração dele bombeasse mais sangue pelo corpo e isso o esquentaria. Poderíamos assar um abrigo antes que escurecesse, mas teríamos que ser rápidos.

Assenti com a cabeça e me virei para Jeremy.

O cavalo negro se abaixou e eu subi em suas costas, cuidando para não machucá-lo. Se houvesse uma sela seria mais confortável, mas a magia havia ido embora sem aviso e a sela que Elsie havia usado alguns dias atrás havia desaparecido assim que não precisamos mais dela.

Ao nosso redor, todos se levantaram. Eles estavam prontos para ir. Só aguardavam meu primeiro passo como líder do grupo.

Novamente, eu dei aquele primeiro passo... ou melhor, Jeremy deu o primeiro passo por mim e fomos na frente com Elsie e Caylen ao nosso lado e Charlie atrás de nós.

Apressamos o passo e depois iniciamos uma leve corrida para esquentar o corpo. O vento gelado cortava meu rosto. Eu queria ter colocado meu elmo, mas ele havia desaparecido durante a guerra.

Então lá estava eu, cavalgando sobre um cavalo negro, com meus cabelos negros balançando com o vento atrás de mim. Atravessamos floresta e campos, pequenas colinas e lagos congelados.

Corremos por horas, sem ficarmos cansados. Ao meu redor todos ainda eram animais fortes e poderosos, resistentes ao frio e a fome. Cem anos de bobeira, sem treinamento algum não destruíram as almas daqueles soldados. Em seus rostos, eu conseguia ver a expressão de entusiasmo substituindo o medo. Estávamos embarcando em uma aventura juntos. Se havíamos ganhado aquela batalha sangrenta, ganharíamos qualquer coisa.

No fim do dia, encontramos uma pequena caverna. Não caberia todos, mas os que tinham o pelo mais curto poderiam ficar ali dentro até amanhecer para que não morressem de frio.

Como se fosse um pequeno fio de magia ouvindo as minhas preces, o vento cessou, junto com a nevasca. O chão continuou branquinho, com as marcas das patas de todo o meu povo, mas o ar não ficou mais tão frio e soubemos que sobreviveríamos àquela noite.

No dia seguinte, continuaríamos a rumar para o norte. Se tivéssemos sorte, encontraríamos mais pegadas e talvez até um cheiro para que meu irmão pudesse farejar. Só precisávamos que o tempo colaborasse conosco.

Ali, ao ar livre, eu deitei entre Caylen e Charlie e adormeci, sem perder tempo olhando para um céu coberto de nuvens. Charlie cantarolou alguma música de ninar por alguns segundos antes de adormecer com a pata dianteira sobre a minha mão.

- Az – chamou-me Caylen às minhas costas.

- O que foi? – perguntei num sussurro.

Meu irmão ficou em silêncio por alguns segundos antes de dizer:

- Nada, não. Boa noite.

Eu sabia que ele queria dizer alguma coisa, mas que havia perdido a coragem. Talvez quisesse dizer que estava com medo, ou que ainda estava bravo comigo. Qualquer das duas opções não era boa, mas eu não lhe forcei a responder, sabendo que havia outros animais ao nosso redor que nos escutariam com suas audições perfeitas.

Senti Caylen se virar de costas para mim. Ele bocejou e colocou a enorme cabeça sobre as patas dianteiras, se aninhando para dormir.

Eu fechei os olhos e deixei a escuridão me engolir.

LYRICI - A volta da MagiaOnde histórias criam vida. Descubra agora