Ela é o meu monstro

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Arius

Dormir aqui não faz sentido, não enquanto são as suas paredes que me rodeiam e os lençóis com o seu cheiro que me cobrem.

Ela não está aqui.

Porque ele a levou. Contra a sua vontade. Só voltei para casa dela porque o pai dela nos permitiu, porque não queria que ficássemos sem teto enquanto esperávamos por ela.

Como se isto fosse um ato de misericórdia vindo de alguém com boas intenções.

A única razão de passar as noites aqui e não em frente ao seu portão, onde passo os dias, é o Bo.

A raiva aumenta a cada minuto, a frustração de não poder lutar, de ter que pensar na segurança do pequeno primeiro. Deixo-me ter esta frustração apenas por um segundo antes de me sentir culpado.

O miúdo não tem culpa de nada, aliás, ele está tão preocupado quanto eu. Às vezes levo-o comigo a casa dela, porque ele está desesperado por a sentir, só para a sentir. Pelo que ele diz não tem feridas, mas sente a sua raiva.

Deve ser ainda maior que a minha, como estará? Estará a ser alimentada? Dormirá bem?

Se pudesse corria por lá dentro, matava qualquer um que se atrevesse a pôr no meio do meu caminho e a resgataria. Mas as pessoas que lá estão tem aptidões como as minhas, alguns piores que eu.

Se pelo menos a tivesse treinado um pouco melhor, se tivesse ajudado a desenvolver o seu dom para que o percebessemos melhor ela pudesse sair pelo seu próprio pé.

Ela não está preparada, e não temos informações suficientes para saber do que ela é capaz. Sei que ela se reteve nos treinos, com medo de me magoar ou ao Bo. Mas se eu tivesse insistido, se tivesse lutado um pouco mais... Talvez não estivéssemos nesta situação.

A casa de cima está vazia, comprovo-o quando, numa noite em que me permiti beber demais subi, com a ideia de pedir explicações a Heli e à sua avó, que deviam ter sido os anjos da guarda para a Lace, que deviam ter sido amigas, mas se revelaram uns monstros que só queriam dinheiro.

A ideia era realmente buscar uma justificação para o seu comportamento, embora fosse com a raiva no limite e com um espinho na mão pronto a atacar.

Ainda bem que a casa estava limpa, que os móveis tinham desaparecido, assim como os seus pertences, ou o resultado podia ter sido muito pior.

Podia ter sido muito violento, e isso assusta-me, mais do que o normal.

Não consigo aguentar esta espera, não consigo tê-la longe, não conseguir protegê-la, não poder fazer nada. Estou habituado a controlar tudo à minha volta, e agora não consigo, alguém quer manipular a sua vida, roubar
-lhe o livre arbítrio, e eu nada posso fazer.

Elas foram espertas em não voltar.

Sabiam que sofreriam, se não fosse pelas minhas mãos, seria pelas de Lace.

O pânico é tanto que a única coisa que sinto quando recebo o convite de casamento é alívio.

O facto de poder vê-la, de poder ver com os meus próprios olhos se ela está bem é tirar-me um peso dos ombros. Preciso de olhar para ela e de a ler como costumo fazer, perceber se devo explodir com aquela casa ou se devo ser mais brando.

O tempo em que me preparo para o casamento é completamente apagado da minha mente, quando me apanho no reflexo do carro é que me vejo todo de preto, com o fato no corpo, e o cabelo negro. Pareço outra pessoa, completamente de negro, pronto para o funeral.

Vejo todas as caras da minha antiga família, dos meus antigos camaradas, para quem caçei, quem alimentei, alguns ensinei, outros me ensinaram a mim. Monstros como eu.

BruisanOnde histórias criam vida. Descubra agora