1. Morte e vida genuína

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No primeiro dia da primavera, choveu; o céu estava nebuloso desde as primeiras horas do dia. Pela primeira vez, o barulho dos carros na rua o incomodou, e desejou, pela manhã toda, morar longe da cacofonia do centro. Todos aqueles sons, as pessoas conversando, as buzinas, o choro de um bebê, tudo causava dor. Latejava, doía, ia e voltava. O efeito das aspirinas que tomou depois do café da manhã também não surtiu efeito por muito tempo.
Pegar o ônibus para a aula foi um sacrifício incomum. O chacoalhar do automóvel e o barulho dos freios o deixava tonto, a muito pouco de desfalecer ali mesmo. Desceu cinco paradas antes da sua, incomodado com tudo que o estava estressando desde o momento em que calçou pantufas e errou na quantidade de açúcar no café.
O guarda-chuva também não ajudava muito. A chuva não estava forte, mas o vento, seu inimigo mortal, sim. Chegou com os pés e a barra da calça encharcados na escola, e teve a certeza de que ficaria gripado tão cedo quanto o despertador de seu pai toca todas as manhãs. 
Hwang Hyunjin tem 17 anos completos. É seu último ano na escola e estava pegando pesado nos estudos para entrar no curso dos sonhos: Enfermagem. A mãe, médica, era a principal influenciadora em sua escolha. Hyunjin não queria ser médico, mas estar no meio da saúde sempre foi um prazer imenso. Era irônico, contudo, porque tinha medo de ficar doente e ver outras pessoas doentes também. 
— Você não precisa fazer isso só porque sua mãe quer que você faça — disse seu pai, um dia, enquanto ele tinha uma crise existencial por não se achar suficientemente bom para o curso.
Era difícil acreditar.
A botina pesada e de plástico fazia um ruído grudento no chão de mármore do colégio. Estava atrasado, para piorar as coisas. Os corredores já estavam vazios e o inspetor sondava cada um para ter certeza de que ninguém matava aula. Sortudo, Hyunjin passou despercebido pelo homem calvo e rabugento. 
A sala de Literatura ficava no fim do corredor, à esquerda. Dividia as aulas com seu melhor amigo Kim Seungmin e o melhor amigo de seu melhor amigo, Yang Jeongin. Hwang não se importava com o fato de ser a segunda opção do Kim. Melhor que não estar na lista de opções. 
Os três sentavam-se no fundo da sala, logo atrás da dupla de melhores alunos da escola: Christopher Bang (Chan) e Lee Felix. Os dois cérebros eram responsáveis por 95% de todos os 175 prêmios que o diretor insiste em mostrar para os novatos, apenas para fazê-los acreditar que precisam, de um jeito ou de outro, chegar àquele nível. 
Tentando chamar o mínimo possível de atenção, Hyunjin entrou pela porta de trás, sentando-se em seu respectivo lugar, logo ao lado da entrada. Mas, claro, a professora tinha olhos atrás.
— Atrasado de novo, senhor Hwang.
A turma toda se virou para o garoto, ainda colocando seus pertences em cima da mesa. 
— Perdi o ônibus, senhora Lee. Peço desculpas.
— Já é o quinto atraso esse semestre, mais um e você leva bomba por falta na minha matéria. Acho melhor pegar um táxi na próxima vez.
Os alunos riram. Hyunjin odeia essa atenção toda.
— Fica frio, cara — sussurrou Seungmin, puxando-o para se sentar antes que levasse outra rodada de risadas indesejadas.
Hwang não é popular. Na verdade, ele não conhece ninguém naquela turma que seja. Não do jeito que há nos outros colégios: a roda dos valentões, a dos jogadores de futebol e as patricinhas. O máximo nível de popularidade naquele lugar era ser incrivelmente inteligente como Chan e Felix. E, pelo que soube dos dois, são prodígios desde criança: Lee ganhou o título de grão-mestre júnior, a maior honraria que jovens enxadristas podem ganhar, e possui uma lista imensa de concursos ganhos num longo período. A média de notas dele nunca foi menor que 9,9. Chan não fica muito atrás: apesar de odiar xadrez e listas, o terceiranista tem um QI muito acima da média e é um mestre da matemática e física. Sua média varia entre 9,8 e 10,0. 
Se Hyunjin fosse capaz de invejar alguém, seria Chan; e, mesmo que Christopher e Felix tenham essa fama de serem bons em tudo, não são grandes idiotas como a maioria pensa. Hwang não diria que são amigos, mas conversam às vezes. Lee é muito mais fechado, ao passo que Chan conversa até acabar de vez o assunto — coisa rara quando se trata dele.
— Ei, Hyun, viu o jogo de ontem? — perguntou Bang, baixinho. 
A verdade é que ele não viu, mas respondeu que sim. Hyunjin não tem uma TV, então todos os jogos de vôlei que divide com Chan são vistos dois dias depois, quando passa o reprise no canal aberto da biblioteca municipal. 
— México perdeu feio nas bolas na paralela, não acha? E o time da Guatemala nem é tão bom na saída de rede.
— Pois é — sorriu. — Mas o jogo não foi tão ruim.
— Não foi tão ruim? O México esmagou a Guatemala com 3 a 0, tem certeza que viu o jogo?
— Devo ter dormido no fim sem perceber. Não cheguei ao último set do jogo.
— Provavelmente, cara.
Ele não estendeu a conversa, e Hyunjin agradecia por ter acabado logo. Odeia mentir, mas não quer ser o único da turma que não tem TV. Ou não apenas não queria conversar, sentia-se estranhamente tonto e suando por todos os poros. 
Seungmin o encarou, mas não ousou proferir uma palavra sequer. Hwang sentiu que era hora de parar com todas as mentiras, que isso o engoliria de uma vez quando menos esperasse.

Hyunjin morre no finalOnde histórias criam vida. Descubra agora