2. Morte, vida e neblina

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— É aqui que você mora?
A mãe estava desgostosa. O lugar era simples e não tinha muitos móveis, porque o emprego de meio período de Hyunjin não pagava o suficiente para fazer compras muito caras. O microespaço tinha um sofá-cama, dois armários de cozinha e uma pia, onde o garoto lavava a louça e as roupas, estas que estavam penduradas em uma espécie improvisada de varal, porque não tinha uma cômoda para guardá-las. 
— Desculpe se não te agrada. Meu dinheiro só compra comida e paga a conta de água. 
Hyunjin notou que ela estava lutando contra a iniciativa de levá-lo para a sua própria casa, mas lembrou-se de ter prometido ao filho que não interferiria em sua independência. No entanto, apesar de ser um espaço extremamente pequeno, era ajeitado, limpo e aconchegante; três coisas que Hwang sempre conseguiu combinar, desde que dividia o quarto com uma prima, antes de ela se mudar para sabe-se lá onde depois de completar 18 anos.
O pai estava no telefone, ocupado demais para dar atenção à falta de mobília, embora Hyunjin tivesse certeza de que ele não ligaria muito: morar no centro já é um sacrifício enorme de dinheiro, mesmo que o prédio não fosse o mais indicado da cidade. Era o bastante para apenas uma pessoa viver, no máximo duas e um cachorro.
— Já trouxe amigos aqui?
— Já, mamãe. 
— Você nunca me apresentou um deles. Só conheço o Seungmin, mas ele é quase da família.
— Ele é meu único amigo, mãe, e já me basta. Será que a senhora pode, só por alguns minutos, tentar falar sobre qualquer outra coisa que não seja a minha vida? Eu sei que é minha mãe e tem o direito de saber, mas já respondi a muitas perguntas nos últimos dois dias, que, não sei se percebeu, foram extremamente cheios pra mim. Mas a senhora não parece se importar tanto, porque lida com essa merda todo santo dia.  Então, por favor, tente ser minha mãe por um dia e não minha médica ou assistente social.
O pai desligou o telefone. A campainha tocou. Seungmin estava do outro lado, segurando um pacote embrulhado nas mãos e carregando um sorriso no rosto. Ele ainda não sabia que Hyunjin estava morrendo, e ficaria assim por um bom tempo se dependesse dele. Abriu a porta, suspirando baixo, e recebeu o amigo com uma felicidade fingida. 
— Oh, olá, senhor e senhora Hwang — cumprimentou. — Hyunjin não atendeu às minhas ligações ontem e não foi na aula hoje… Vim comemorar o seu aniversário atrasado!
É claro, o seu aniversário. 20 de março, primeiro dia da primavera e aniversário de Hyunjin. Ninguém se lembrou, nem mesmo ele. Só Seungmin.
— Feliz aniversário, Hyun!
Como podia dizer que estava sozinho, se o tempo todo Seungmin o fazia sentir como as duas únicas pessoas no mundo que importavam?

Os pais de Hyunjin foram embora na mesma noite, enquanto Seungmin ficou até tarde jogando jogos de tabuleiro com o amigo, o único entretenimento possível. Não foi de tudo um porre, embora estivesse incomodado que o Kim achasse que toda aquela cena não tivesse passado de um mal-estar temporário. Mas também não sabia como contar, então, quanto mais tempo ganhasse sem precisar estragar tudo, melhor seria. 
Ele levou mais dois dias para conseguir ir para a escola e encarar a realidade dos fatos: Christopher sabe que ele está doente e que vai morrer. Mas ele não apareceu naquela manhã. Jeongin disse que ele e Felix estavam treinando para o próximo Campeonato de Inteligência Juvenil das escolas secundárias do bairro. Isso o reconfortou de maneiras que nem ele sabia que existiam. 
— Tenho que passar na sala do diretor — disse, logo após o sino do intervalo tocar.  — Burocracia.
Ele carregava nas mãos dois envelopes feitos pelos médicos: um informando a gravidade da doença, telefones de emergência e uma licença indeterminada para o caso de Hyunjin precisar se afastar durante algumas semanas. O outro continha uma caderneta de 25 páginas de instruções para qualquer imprevisto que ocorrer nas dependências do colégio se ele acabasse passando mal até os paramédicos chegarem.
—  Sua mãe de novo?  — questionou o Yang. Hwang o encarou confuso. — O envelope é do hospital… 
Hyunjin queria sumir. Se continuasse sendo descuidado com coisas simples, como esconder o logo do hospital, logo todos saberiam que não tem muito tempo de vida, e a última coisa de que precisa é um bando de adolescentes sem noção com pena dele. 
— Ah… Mais ou menos isso. Nem ela nem meu pai puderam vir resolver pessoalmente, então eu mesmo estou cuidando de algumas coisas.
— Boa sorte. Soube que o diretor tá um porre de chato hoje. 
— É difícil um dia em que ele não esteja. Sério, caras, por que ele continua em um emprego que definitivamente não gosta?
Jeongin tinha um ponto. Se ele não gostava de estar em um ambiente cheio de meninos e meninas estourando em hormônios, então por que continuava ali? O salário não era dos melhores, e ele não tem família. Talvez esse seja motivo. Não ter filhos para cuidar e sentir o conforto deles estando entre filhos de outras pessoas, cuidando de filhos de outras pessoas. 
— Acho que ele tem bons motivos — respondeu Hyunjin. — Vou nessa. Não quero passar a manhã sentado naquele corredor esperando a boa vontade dele. 
O garoto se despediu dos demais e seguiu o caminho para a sala do diretor. Evitou passar pela sala de treinos do clube de inteligentes, apenas para não precisar encarar Christopher. Não que ele pudesse fugir do outro por tempo demais; o colégio não era muito grande, mais cedo ou mais tarde ele acabaria topando com Chan no meio dos corredores. 
A sala do diretor ficava no andar térreo, logo depois da secretaria principal e do hall de entrada dos visitantes — os alunos entravam pelo portão de trás, para que a entrada principal não virasse algazarra e fizesse os tutores legais dos estudantes desistirem da matrícula. Hyunjin ainda se lembra de ficar maravilhado com o silêncio do lugar, apenas para, no dia seguinte, entender que não era nada do que pensava.
No primeiro de aula, Hwang sentiu que não aguentaria o ritmo dos demais. Todos eram intelectual e divertidamente mais avançados que ele em todos os sentidos das duas palavras. Enquanto Chris e Felix dominavam as bocas alheias com mais um troféu ganho nas férias de verão, outros cumprimentavam e faziam piadas com a galera toda do corredor. Não havia um grupinho exclusivo de popularidade, todos eram populares no mesmo nível, exceto por aqueles que odiavam o fato de ser o centro da atenções. No início, Hyunjin conseguiu passar despercebido por não ser assim tão inteligente, engraçado ou bonito, mas, com o passar dos anos e chegada da puberdade, começou a ficar impossível não notá-lo.
Durante um tempo, não foi tão ruim ter alguns suspiros de meninos e meninas, porque não era completamente invisível. No entanto, durante todo o primeiro semestre do primeiro ano do ensino médio, as coisas saíram do controle: a falsidade dominava o campo com muita gente querendo fazer amizade. Hyunjin não queria ficar popular por ser bonito, então cortou todas as relações com pessoas que ele tinha certeza de terem má índole sobre ele. No fim, restaram apenas Seungmin e Jeongin. Eles e duas únicas pessoas que nunca fizeram questão de se aproximar: Chan e Felix. Por um tempo, Hwang temeu começar a ser alvo de bullying, mas, felizmente, ninguém ali foi mal educado pelos pais, e, mesmo tendo cortado 99% dos laços, os alunos ainda o cumprimentavam e não faziam desfeita, apesar de não ser mais o objetivo principal na vida deles. O fato é: se ele cair, vão rir, e, se ele pedir ajuda depois de cair, vão ajudá-lo. O que for mais conveniente. 
Todo esse medo foi superado conforme os meses passavam e ficasse claro que ele só precisa do seu melhor amigo e o melhor amigo do seu melhor amigo. Eram duas boas companhias e mais que o suficiente para o ensino médio não ser um desastre total e um rio de solidão. De certa forma, estava feliz por estar acabando, assim Seungmin e Jeongin não precisarão olhar para uma cadeira vazia na turma e pensar que fim ele teria levado, pois poderão seguir a vida com outras prioridades. Hyunjin também queria isso, mas desejava o sucesso mais para os seus amigos que para ele mesmo.
A secretaria estava vazia, então Hwang seguiu reto para a sala do diretor. Bateu na porta e esperou que o homem abrisse. Quando o fez, convidou o aluno para entrar e se sentar. 
O senhor Gwej era um japonês boa pinta. Era alto e tinha boas feições, e, vez ou outra, permitia-se ser gentil por alguns minutos e fazer uma piada curiosamente boa. Nem todos entendiam que estar sozinho é doloroso o bastante para não se permitir abrir o tempo todo, então Gwej era alvo constante de críticas destrutivas por parte dos alunos, embora fizesse um ótimo trabalho como diretor. 
— A que devo sua visita, senhor Hwang?
— Vim entregar dois envelopes importantes. — Colocou-os em cima da mesa, esperando que o mais velho os abrisse. — Se puder manter sigilo a respeito do que consta neles, ficarei muito grato.
O diretor franziu o cenho e abriu os dois envelopes. Leu com calma cada um deles, sem expressão alguma sendo esboçada no rosto. No fim, retirou os óculos fundo-de-garrafa e encarou o aluno com uma serenidade jamais vista.
— São informações muito importantes, Hwang. Sinto muito que esteja passando por isso sendo tão novo.
— É… Bem, é uma droga. Mas não posso simplesmente reclamar de tudo de ruim que acontece na minha vida. Tenho meus… amigos, eu acho, e minha família. Não estou sozinho.
É a primeira vez que Hyunjin diz isso em voz alta.

Hyunjin morre no finalOnde histórias criam vida. Descubra agora