3. Morte e vida severina

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— Como sabia onde eu moro?
Hyunjin estava na porta do apartamento, evitando, de todas as formas, que Christopher entrasse. De certa forma, seria bom ter uma companhia por apenas algumas horas, apenas até a dor cessar e Hwang conseguir dormir em paz. Esperava que fosse como Jiyoon dissera: que ele se acostumasse com a dor da quimioterapia.
— Pedi para o diretor... Desculpe pela invasão, mas você provavelmente recusaria a minha ajuda se eu oferecesse. Disse a ele que já sabia sobre... Bem, sobre sua situação e que iria ajudar.
Hyunjin quis rir. Por que parecia tão difícil para os outros falarem sobre a doença?
Minha situação? Chan, isso não é um pacote de tortura.
— Você aceitou tudo tão rápido...
— Bem, o que eu podia fazer? Chorar, não dar a mínima, aceitar rápido... Não seria tudo uma merda de qualquer forma?
Bang não respondeu. A pergunta não era de todo retórica, mas ele também não via necessidade de responder a absolutamente tudo que lhe era perguntado. Hyunjin tá na merda, ele sabe disso.
— Bem, eu te vejo na segunda, então.
— Não quer ficar?
A sugestão ocorreu no impulso. Eram seis da tarde e ele não tinha uma televisão, portanto filmes, séries e afins estavam fora de cogitação. Não tinha forças para cozinhar, então também não seria capaz de preparar um jantar para os dois. E não queria nenhum jogo de tabuleiro. Não podia fazer muita coisa. Bem, ele não tinha muita coisa.
— Quer que eu fique?
— Você não é uma companhia assim tão ruim.
Chris riu.
— Acho que isso é um não.
— Não vai ser tão ruim uma pessoa pra dividir o espaço por algumas horas.

No domingo pela manhã, todos os indicativos possíveis de que o dia seria péssimo foram mostrados a Hyunjin, a começar pela febre altíssima e os piores dez minutos da vida do garoto, tendo passados inteiramente apoiado no vaso sanitário, vomitando tudo o que não comeu nos últimos quatro dias. Não tinha apetite algum e tudo o que comia lhe voltava à garganta e ia direto para a privada.
No dia anterior, Chan foi embora assim que Hwang adormeceu, não sem antes deixar um bilhete com seu número de telefone e endereço, caso precisasse de ajuda com alguma coisa. Mas, como sempre, Hyunjin não queria incomodar, porque sabia que Bang estaria estudando ou fazendo qualquer outra coisa melhor que cuidar de um adolescente doente. Tinham se tornado adultos cedo demais para o que se podia considerar normal.
Passou a manhã na cama, lamentando o enjôo incessante e com medo de a febre lhe causar convulsões. No início da tarde, se julgou apto a tomar um banho, embora tivesse demorado uma hora a mais para fazê-lo. Estava cansado ao extremo e queria só mais algumas horas de sono, e o faria, se a campainha não tivesse tocado. Rastejando-se, abriu a porta. Para a sua surpresa, era Felix do outro lado, e ele também parecia igualmente confuso.
— Oi, Felix.
Foi a frase mais sensata que encontrou no momento.
— Bem, a não ser que esse seja o apartamento 404, seria uma coincidência muito estranha.
— É uma coincidência estranha. Você subiu mais dois andares. Aqui é o 604.
— Ah, obrigado... Não sabia que morava no mesmo prédio que o Chan.
Hyunjin fez uma careta estranha, difícil de descrever. Ele morava ali há um ano e meio e nunca havia visto Bang entrar ou sair por qualquer uma das portas — ele era suficientemente curioso para gastar algumas horas do dia esperando alguém entrar ou sair de qualquer um dos andares, enquanto subia e descia de elevador junto com os moradores.
— Estou tão surpreso quanto você — respondeu, tentando manter um sorriso divertido no rosto, só para não precisar prolongar a conversa.
— Então quer dizer que vocês dois nunca...
— 404, Felix — interrompeu. — Desculpe-me pela expulsão, meu dia não está lá essas coisas, espero que entenda.
O outro meneou a cabeça, confirmando. Se Hyunjin não queria mantê-lo ali nem conversar, era a escolha dele. Não eram próximos de qualquer forma, então o papo não se manteria por muito mais que cinco minutos constrangedores.
Quando ele entrou no elevador, Hwang fechou a porta. Tinha certeza de uma coisa: ele não era o único mentiroso da turma.

Na segunda-feira, Hwang não se atrasou. Acordou duas horas antes do som do despertador e não conseguiu pegar no sono outra vez, então tudo que costumava fazer rápido demais dessa vez foi feito tão devagar quanto o tempo passava.
O apartamento não parecia mais tão atrativo quanto antes. Sua liberdade já não era mais tão bonita, porque nada disso teria bom proveito em alguns meses. Os pais de Hwang precisariam dar fim a tudo que um dia trouxe conforto para o filho. Às vezes não é sobre criar o filho para o mundo, é criar sabendo que, assim como os próprios pais, os filhos também morrem. Uns antes e uns depois, mas todos se vão.
A verdade é que Hyunjin se acostumou. Ele sabe que se acostumou. Mas não devia.
Hyunjin se acostumou a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tinha vista, logo se acostumou a não olhar para fora. E, porque não olhava para fora, logo se acostumou a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abria as cortinas, logo se acostumou a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostumou, esqueceu o sol, esqueceu o ar, esqueceu a amplidão.
Hyunjin se acostumou a acordar de manhã sobressaltado porque estava na hora. A tomar o café correndo porque estava atrasado. A ver as mensagens no celular no ônibus porque não podia perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dava para almoçar. A sair do trabalho porque já era noite. A cochilar no ônibus porque estava cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
Hyunjin se acostumou a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceitava os mortos e que houvesse números para os mortos. E, aceitando os números, aceitava não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceitava ler todo dia sobre a guerra, os números, e a longa duração.
Hyunjin se acostumou a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
Hyunjin se acostumou a pagar por tudo o que desejava e o que necessitava. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisava. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valiam. E a saber que cada vez paga mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
Hyunjin se acostumou a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A assistir a televisão na biblioteca e ver cada um dos comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
Hyunjin se acostumou à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostumou a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
Hyunjin se acostumou a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, foi afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema estava cheio, ele se sentava na primeira fila e torcia um pouco o pescoço. Se a praia estava contaminada, ele molhava só os pés e suava no resto do corpo. Se o trabalho estava duro, ele se consolava pensando no fim de semana. E se no fim de semana não havia muito o que fazer, ele ia dormir cedo e ainda ficava satisfeito porque tinha sempre sono atrasado.
Hyunjin se acostumou para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostumou para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. Ele se acostumou para poupar a vida. Que aos poucos se gastava, e que, gasta de tanto acostumar, se perdeu de si mesma.
Hyunjin se acostumou a ele mesmo. E se acostumou a não saber quando a vida acaba, começa e deixa de acabar e começar. Hyunjin se acostumou a não questionar. A aceitar as coisas, porque não tinha mais o que fazer.
O ônibus estava estranhamente sem lotação alguma, embora os olhares sobre o garoto o incomodassem tanto quanto se o transporte estivesse cheio e nenhum olhar sob ele. Talvez fosse sua aparência precária ou as duas máscaras descartáveis cobrindo a boca e o nariz, ou apenas sentiam que de saudável Hyunjin não tinha nada.
Não que esse tipo de coisa dê para esconder por muito tempo. Em poucos dias, aquelas pessoas notariam a perda de peso, a falta de cabelo e a pele pálida, tudo em decorrência dos efeitos colaterais da quimioterapia. E pioraria ainda mais quando os médicos o julgassem apto para um tratamento mais agressivo: radioterapia.
Desceu duas paradas antes da sua, mais uma vez. Queria andar três quadras apenas para ter certeza de que conseguiria se manter em pé durante a manhã toda e sem gerar nenhum tipo de julgamento suspeito. Não que estivesse tão na cara, mas não era difícil adivinhar que a coisa não estava bem o bastante. E, claro, ele continuou recebendo olhares estranhos.
Com o câncer em estado mediano a crítico e a imunidade cada vez mais baixa com os medicamentos e a quimioterapia, as chances de pegar um vírus ou uma bactéria eram extremamente altas, e isso agravaria o quadro da leucemia em 63% de acordo com os médicos. Dessa forma, toda e qualquer tipo de proteção contra esses agentes infecciosos era necessária.
No colégio, ninguém fez questão de reparar ou perguntar. Nem todos acordam bem e isso era motivo suficiente para apenas desejarem melhoras para seja lá o que Hyunjin estivesse passando: não era da conta deles. Pelo menos isso conseguiam respeitar.
Seungmin foi o único curioso que perguntou.
— Meu Deus, cara, você parece um morto-vivo. O que te deu?
Christopher, na mesa da frente, virou-se pouco e disfarçadamente. Hyunjin, no entanto, notou que ele estava alerta para qualquer um dos pontos da conversa. Havia criado uma personalidade protetora para o garoto.
— Gripe — disse. — Me pegou de jeito dessa vez.
— Melhoras, cara.
Depois disso, Kim não fez questão de conversar mais. Parecia que um abismo de mentiras, omissões e desconhecidos começava a se formar entre eles. E preocupações eram a última coisa da qual Hwang precisava para o momento.
Nenhum dos dois comentou sobre a ausência de Jeongin.

No final das aulas, Hyunjin tentou apressar o passo para não precisar pegar carona com Chan e fingir não saber absolutamente nada a respeito da excêntrica coincidência de morarem no mesmo prédio. Mas o esforço foi em vão quando virou a esquina e deu de frente com o rapaz.
— Achei que já tinha ido embora, fiquei preocupado.
Preocupado. Hyunjin pensou. Há muito tempo não ouvia alguém lhe dizendo que estava preocupado com ele, com o que estava fazendo e se estava tudo bem na caminhada. Bang pode não ter deixado explícito, porém Hwang de alguma maneira sabia que estava por trás das palavras.
— Estava no caminho.
— Eu te levo. Tá muito sol pra você ir andando, e essa rua não tem nenhuma árvore pra você ir pela sombra.
Ele queria recusar. Queria dizer que ainda não precisava de um suporte 24 horas por dia e sete dias por semana, mas ter um pouco de apoio era melhor que não ter apoio nenhum. E, mesmo que Chan se recusasse a contar que também morava no mesmo prédio, Hyunjin não sentia rancor ou qualquer sentimento de repulsa sobre o assunto. O único grande problema era que, se um mentiroso incomoda muita gente, dois incomodam muito mais, e isso significava, em suma, que alguém precisava sair de cena o mais rápido possível.
— Não vou te incomodar?
Bang riu.
— Você nunca vai me incomodar, Hyunjin.

Na terça-feira, Hyunjin faltou à aula. Não chegou a acordar realmente. Tinha entrado em um estado febril, com a garganta seca e suando mais que o normal. Estava a muito pouco de convulsionar, mas não tinha forças o bastante para mover o braço um pouco para a esquerda e telefonar qualquer número de emergência que estivesse na lista.
Foram duas horas de sofrimento agudo, medo e desesperança. Foi nesse momento que Hyunjin descobriu que seu maior medo nunca foram aranhas, palhaços ou estilhaços de vidro. O maior de Hwang Hyunjin é morrer sozinho.
Quando ele se julgou apto a se mover o mínimo que fosse, ligou para o primeiro contato da lista de apenas 7 pessoas: Chan.
Ele não atendeu. Nem na segunda ou terceira vez.
Era óbvio: Chan estava na aula. É terça-feira e, se Hwang entende alguma coisa a respeito dos horários de aula da própria escola, Bang estaria na aula de química, com Felix. Isso significava que ele não atenderia a nenhuma de suas chamadas, não importa o quanto tentasse. Pela primeira vez, Hyunjin se sentiu incapaz de cuidar de si mesmo.
Na última tentativa, Hyunjin já não conseguia mais manter a cabeça erguida para conferir se ele tinha atendido e a audição não conseguia detectar qualquer ruído oriundo da ligação.
Às dez e quinze, intensas batidas na porta deixaram seu corpo em alerta. Do outro lado, três vozes masculinas bolaram um plano, o que não foi muito útil, já que a porta foi quebrada ao meio no exato instante no qual o paramédico chutou com toda a força que tinha.
— Senhor Hwang? — questionou. — Senhor Hwang, meu nome é Oh Jungjin, consegue me ouvir?
Ele conseguia, mas não era capaz de responder.
A mão gelada do paramédico tocou sua testa, suas bochechas e depois sua nuca. Um arrepio entorpecente surpreendeu Hyunjin, provocando, mais uma vez, uma onda dolorida na coluna. O contato mão gelada com a pele quente causou choque térmico no jovem.
— Vamos levá-lo ao hospital, senhor Hwang. Não feche os olhos, por favor.
O paramédico parecia ser novato. Hyunjin quis desejá-lo boa sorte no novo emprego, mas não conseguia. Não conseguia falar. Não conseguia mexer. Não conseguia pensar direito. Não conseguia fazer nada além de distinguir o suor do rosto com a lágrima quente que descia pela bochecha. Pela primeira vez, Hyunjin soube o que era sentir tudo e não expressar nada. 

Hyunjin morre no finalOnde histórias criam vida. Descubra agora