INTERLÚDIO III

454 63 55
                                    

Texto retirado do diário de Ulisses Braga
13 de Janeiro de 1995


Algo bizarro aconteceu comigo ontem.

Alguém bateu na minha porta.

Não era a camareira, claro. Quando abri a porta não havia vivalma em minha frente, mas quando coloquei a cabeça para fora do quarto avistei ao longe uma menina dobrando a esquina do corredor. De início aquilo me pareceu estranho, continuei onde estava apenas observando o vazio que ficou o lugar onde ela dobrou, mas eis que a menina apareceu novamente e, como se já não bastasse ela ter aparecido para mim, me chamou com o dedo indicador.

Ela era ruiva, magra e aparentava ter uns 15 anos. Logo pensei comigo mesmo: "Isso é loucura. Eu não vou seguir essa assombração!". Então, vendo que eu não havia me movido, a menina repetiu o gesto, insistindo em me fazer segui-la. Apesar de já ter visto coisas semelhantes acontecerem comigo nesse hotel (a menininha no banheiro me mostrando onde havia morrido) fiquei na dúvida se deveria mesmo seguir aquela pessoa - se é que posso considerá-la assim. Fiquei tentado a ir, mas a dúvida ainda me mantinha preso onde eu estava, afinal, poderia ser uma armadilha da coisa que vive aqui. Você teria ido?

Eu fui.

Guiado por só-Deus-sabe-quem, acabei chegando até um quarto incrivelmente escuro. Tentei acender a luz, por um momento me esquecendo de que o sistema elétrico nesse lugar já não funciona há anos. Então com a luz da lanterna, que eu havia rapidamente pegado antes de seguir aquela menina, iluminei o quarto. Me deparei com quatro corpos jogados ao chão, completamente carbonizados. Ao lado dos corpos a jovem estava de pé, as mãos juntas como se estivesse nervosa. Eu não fazia ideia de como conversar com aparições como aquela, mas ela parecia uma garota calma e não indicava perigo. Me aproximei calmamente, sem tirar os olhos dela. De repente uma mão agarrou minha perna; era um dos corpos no chão. Olhei para a coisa que havia me segurado, era pequena, menor do que o corpo ao seu lado. Deduzi que aquela pessoa grudada aos meus pés era o cadáver de uma criança.

- É minha irmã - disse a garota de pé. Olhei para ela e percebi que ela olhava para o mesmo corpo menor ao qual à pouco eu havia prendido minha atenção. - Morreu antes de mim, tive que ver ela agonizar até a morte do mesmo jeito que meus pais. Essa outra sou eu.

Ela referia-se ao corpo ao lado da criança. Notei então que a mão da garotinha já não estava mais agarrada ao meu pé, nem mesmo havia um corpo ali. Todos haviam sumido.

- A mulher que fez isso com a gente, era maluca. Ela simplesmente entrou no nosso quarto e ateou fogo em tudo. Saiu e nos trancou aqui. Meu pai sofria com problemas pulmonares e morreu com a fumaça antes de tentar fazer alguma coisa para nos salvar. Sem força suficiente para derrubar a porta, minha mãe, minha irmã e eu morremos queimadas. Os bombeiros demoraram para chegar, só conseguiram evitar que o fogo se espalhasse para o corredor e os outros quartos. E a desgraçada que fez isso com a gente, deu um jeito de arruinar mais uma família, causando a morte de mais duas irmãs. Tudo isso, enquanto era movida pelo mal. Ela era a personificação do Diabo. Tirou a vida da minha família e nos amaldiçoou para sempre.

Aquela história era trágica. Já havia lido tudo sobre esse caso mas não com todas essas riquezas de detalhes. Dava para perceber a dor que a garota sentia ao relatar o passado. A tristeza era bem perceptível em seu olhar. Mesmo sem vida ela me passava a energia de um ser humano sofrido, lutei contra mim mesmo para conter a enorme vontade que sentia de abraçá-la. O que seria impossível, ao menos que os fantasmas deste hotel fossem sólidos.

- Se você está morta, como eu estou te vendo?

- Eu fui uma vítima desse hotel, assim como os meus pais, minha irmã e algumas outras dezenas de pessoas ingênuas que não faziam ideia do poder desse lugar. Minha alma está presa aqui, todas estão. Sofremos o que uma vida bondosa deveria evitar. Revivo todos os dias as dores daquele momento antes de morrer, vejo minha família morrer antes de mim e passo por tudo isso infinitas vezes ao dia, durante todo o ano, isso só acaba no dia em que realmente morri, que é onde eu posso fugir do inferno e ter a certeza de que continuo presa nessa droga de hotel.

CHECK-IN PARA O INFERNOOnde histórias criam vida. Descubra agora