07. ESMERALDA: Lindo e burro

1.9K 282 117
                                    

Giancarlo gosta de mentir, imagino, pois faz isso o tempo todo.

Mente sobre o que gosta.

Mente sobre o meu passado.

Mente para o homem que parece bom, e eu me pergunto até quando, mas desejo que pare logo, pois estou começando a acreditar. 

Resolvo obedecer, não estou em condições de lidar com os castigos de Giancarlo hoje.

Fecho os olhos, concentrando o resto da minha energia na transformação assim que sou deixada sozinha.

Não dói como aconteceu da primeira vez, na noite em que fui encontrada no hospital.

Gradativamente as escamas desaparecem, e então as barbatanas e cauda se separam.

A pior parte é ficar de pé, pois a sensação é de ter as solas perfuradas por alfinetes invisíveis.
As ações entre a banheira e a cômoda de onde retiro uma das camisolas novas, todos os meus vestidos são camisolas, acontecem de modo lento, mecânico.
Por que os olhos dele possuem aquela cor?
E o cheiro? Ele não tem o fedor dos outros.

Quero perguntar tudo, mas não falo, não com eles, e agora Giancarlo o fez acreditar que sou um monstro capaz de assassinar um demônio sugador de sangue num agitar de cílios se estiver no ambiente certo.

Ele me odeia ou vai odiar, e quando acontecer vou me machucar de novo.
Os dois entram quando estou guardando a escova na cômoda.

Tive tempo de escovar, não de secar os cabelos.

—Tem certeza, Carlisle?—

O homem confirma, e a curiosidade some, substituída pela vontade de receber a tigela de mingau de aveia.
Espero que coloque em cima da mesinha de canto, mas ele caminha até a cadeira de balanço onde estou sentada e deposita nas minhas mãos.
O calor emanando da louça é quase tão agradável quanto o mel usado para adoçar a mistura.

— São criaturas da noite, como nós, infinitamente mais ferozes, é claro. Podem assumir a forma humana quando o sol se põe, mas retornam ao seu eu monstruoso ao amanhecer.— 

Reviro os olhos ao ouvir pela centésima vez o mesmo absurdo, ansiosa para ser deixada com a comida antes que Giancarlo me chame de querida de novo.

Ouvi-lo me chamar assim arruína meu apetite.
Carlisle não sai, Giancarlo menos.

Ambos caminham até a minha cama onde o intruso se senta após trocar os lençóis.

Giancarlo coloca no pescoço dele a corrente usada em mim quando estrago as coisas.

Carlisle permite, mesmo sabendo que  ficará impossibilitado de deitar, ficar de pé ou se mover direito.

Estúpido, aquele vampiro é a criatura mais estúpida que entrou na minha cela. 

—Comporte-se e receberá um presente.— 

Cerejas? Peras? Creme? Só esmolas. Não sou mais a idiota do começo  que acreditava nas falsas promessas de liberdade. 

Sem ameaças adicionais, isso significa que se eu machucar Carlisle não haverá punição alguma, e eu posso, contanto que fique longe dos dentes.

A restrição no pescoço o impedirá de revidar com mordidas.
Raposa astuta.
Ele sai, trancando a cela e fechando a porta.

Começo a comer assim que escuto a escada de acesso sendo fechada.

Nunca tive um vampiro amarrado na minha cama, a possibilidade de me vingar por ter sido aprisionada e ferida inúmeras vezes é sedutora.

As primeiras colheradas estavam incríveis, o restante uma decepção.

Doce demais.

Empelotado.

Excesso de passas.

Asqueroso.

Ele cozinhou pessoalmente, eu tenho certeza.

Ninguém da família teria ido preparar, e os empregados não dormem na mansão.

Céus.

De todos os vampiros do mundo, por que amarraram na minha cama um que nunca se mostrou tentado a me dilacerar e cozinhou para mim?
Impulsiono o corpo para trás, olhando para o teto em movimento graças a cadeira de balanço.
Carlisle tira da lapela um bloquinho de notas.

Escreve nele com dificuldade, pelo ritmo, a cada vai e vem da cadeira uma frase  surge... uma frase que eu não consigo ver.
Mentalmente, novas perguntas são adicionadas às outras: olhos, cheiro, bloquinho.

Levanto, caminhando até a mesa de canto sob o pretexto de colocar a tigela quase vazia lá.

Carlisle escreve... escreve e esconde.

Repete o gesto infantil, movendo os braços de modo a ocultar suas anotações tantas vezes que no minuto seguinte me vejo de joelhos no colchão fofo só para arrancar o caderno de suas mãos.

"Mingau de aveia: Não gosta."

Amo mingau de aveia, detesto o que ele cozinhou, está pavoroso.

"Barbatanas com extremidades afiadas//garras"

"Dentes afiados???"

"Muda???"

"Capaz de entender nosso idioma."

"Pele fria."

—Sua memória não pode ser tão ruim.—

A acusação escapa assim que jogo o caderno de volta.
Ele é médico? Trouxeram um herdeiro incompetente  que comprou o diploma para me atender? Seu toque é suave, cuidadoso, mas ardeu muito quando limpou minha pele.
Instintivamente examino as áreas tratadas, emitindo um suspiro de alívio ao notar ausência de sangramento. 

Eu estou doente, não quero morrer acorrentada num sótão, e, acima de tudo, não quero morrer antes dos Giovanni.

—Tive um dia de muitas descobertas. Seria uma lástima deixar os detalhes de lado.—

—Mamãe dizia que a escrita é inimiga da memória.—

—Sócrates dizia isso. Estudam filosofia no fundo do mar?—

O maldito fez de propósito.

Num lapso eu quase respondi a pergunta.

Ele irá até os Giovanni contar ter ouvido de mim que nunca estive no fundo do mar e os Giovanni voltarão possessos ameaçando cortar minha língua viciosa.

— Vá e-m-b-o-r-a.—

Um estorvo.

Médicos não puderam me ajudar no passado, quando era humana e minhas pernas mostraram sinais de debilidade.

Por que ele conseguiria agora? 

E não é tão ruim.

Recuperação lenta implica dormir mais e ser cortada menos.  

— Não ensinam etiqueta, suponho.—

— Oh, ensinam, e obedecemos a regra de que moças solteiras não recebem visitas noturnas. Vê o quarto? É meu. Acaso existe alguma aliança em nossos dedos? Grite, grite bem alto e diga que eu o agredi, ficou assustado e quer ir embora. Use seu tempo para aprender a cozinhar.—

—Homens não cozinham.—

—Bem, o senhor obviamente não. Aquilo estava horrível.—

Aponto para o mingau, lançando fora todas as lições recebidas de como me portar como uma dama respeitável. 

Para minha surpresa o infeliz riu.

Olhou para mim esboçando o sorriso mais bonito que eu tive o desprazer de vislumbrar desde que fui trancada no sótão.

✔ Esmeralda e outras flores mortas| Carlisle CullenOnde histórias criam vida. Descubra agora