Caminho de Memórias

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Da garganta de terra eu saio
e o Sol cozinha meu crânio.
Sou jogado nesse balaio
de pessoas tossindo polônio.

Encaro a esquerda
e sigo para a esquerda.
Tiro os olhos do lixo
mas passo pelo lixo
- ao menos é reciclável.

A ponte está erguida.
Sento e espero no canto
enquanto aqueles na minha frente
se acrobatam, se mostram pra gente
para não perderem o orgulho, o ritmo,
o ritmo da morte ao qual trabalham.
Me olham e apenas gargalham.

Cara, para de me chamar,
eu não posso te ajudar.
São tantos, nossa, são tantos
e eu sou só um, vil e fraco.
Se escuto, me humilham.
Se ignoro, ameaçam.
E se apontam o canivete
não teriam coragem
assim espero. Desculpa.

A árvore de copa alta, imponentemente desproporcional, captura minha atenção. Materializa-se um sorriso doentio abaixo da máscara.

Em meio aos prédios em construção,
a todo o barulho e confusão,
estas folhas verdes quero tocar.

Aliviado, surgem mais encantos
como as hipnotizantes flores roxas.
Tão simples, mas tão vivas,
resistência de uma amarga rotina,
fazem meu coração fugir do corpo.
Será que só eu as vejo assim?
Deixa eu tirar uma foto.
Ah, já apodreceram
igual os peixes de terça-feira.

Ao longo do bosque, a mente torporizada
deseja a solidão refutar.
Imagino ela ao meu lado e
trocamos palavras, trocamos atenção.
Eu falo para ela mais desse trajeto
que toda semana por vezes faço.
Ela fala para mim das coisas que gosta
com paixão, com alegria, com sabedoria.
Nessa fantasia irrealizada
o amor se faz na companhia.
Acima de tudo, seríamos amigos
capturando fúteis momentos juntos,
fomentando intimidade pela convivência.

Às vezes, no entanto, precisamos anuir com a realidade.

Falta pouco, estou quase lá. Caso eu sobreviva o cruzamento assassino que nunca para de fluir, terei meramente que descer a rua dos postes cancerígenos e antenas tumorosas; passar pelas jazidas de enxofre onde os tolos se divertem; evadir as famintas mamangavas e a chuva de pitangas; chorar pelo centenário tronco que, envenenado, dá paulatinamente menos flores cada verão; escalar os dois andares com o formal e pesado cargo nas costas; só então, ao abrir da porta, poderei mais uma vez tardar o descanso.

Poemas Totalmente DespretensiososOnde histórias criam vida. Descubra agora