Então, no final das contas, esse será o meu destino. O mesmo de meu pai. Não tenho opção se não sucumbir a morte em vida. Sei que no final nem sequer lembrarei de meu nome. Nome este que meu pai, José Lopes, escolheu com tanto carinho, Abraão. Por muito tempo da minha vida eu não gostava desse nome, com o tempo fiquei indiferente, mas depois que o estranho morbo levou não só o dele, mas o meu também eu passei a amá-lo.
Minha filha não merece passar pelo que eu passei, mas é o único jeito de salvá-la de sua doença. Maldito câncer! Nossa menina linda, tão nova, quase dezesseis, tendo que enfrentar essa porcaria.
Quero ver seus cabelos negros florescerem, tão grandes e brilhantes uma vez mais. Quero ver o brilho de seus belos olhos castanhos brotarem novamente. Quero observá-la lendo seus livros de fantasia que ela tanto gosta. Não com o olhar perdido como se a qualquer custo ela quisesse fugir da realidade.
Seu verdadeiro sorriso me faz falta. Não esse que ela nos apresenta, vazio, sem vida, sem esperanças. Quero abraçá-la quando ela se formar mais tarde naquilo que ela tanto deseja. Ser médica. Será mais um orgulho para a família e não tem como não escapar um sorriso a contragosto que é imaginar ela nos apresentar o primeiro namorado. Não estou ansioso por isso, definitivamente não, mas é o que todo pai um dia terá que encarar.
Luciana, minha querida esposa, isso também é por você. Não aguento mais ver você chorar. Os médicos te dão esperança que o tratamento irá funcionar para depois arrancar mais um pedaço de você a cada notícia que o linfoma só avança. Todos nós sabemos como isso vai terminar, quer dizer iria.
Vou te ver tranquila novamente, vou ver seu sorriso para a vida. Saudades de termos clima um para o outro. Essa situação nos tirou de nosso casamento, nos fez refém ao destruir nossa felicidade. Temos um ao outro, tentando ser o pilar de cada um. Teremos mais.
Como sinto falta de rolarmos pela cama e no auge de nosso gozo poder contemplar suas curvas, seu cheiro, olhar para os olhos que deu a nossa filha e beijar a sua boca carnuda. Até hoje tenho a sensação de estar beijando você pela primeira vez. Como eu amo você. Pelo menos consigo acariciar seus cabelos durante a noite. Isso ainda funciona entre nós. Incrível como nossa filha puxou quase tudo de você, menos a sua personalidade. Amo o seu jeito organizado e que pensa em tudo antes de fazer as coisas, mas o jeito deixa que eu resolvo, me passa a bola que eu chuto de nossa filha é só meu.
Às vezes vêm na minha cabeça que nossa filha só está doente para eu poder chegar a isso, para que a maldita coisa possa se alimentar de mim também. Será uma maldição que se abateu sobre a nossa família? Será que um dia algo acontecerá com os meus netos, com o marido de minha filha ou com qualquer coisa que seja essencial para a sustentação de sua vida onde ela terá que fazer o mesmo?
Penso que não. Acredito que só fui levado a esse destino porque eu não consegui me conformar com o mal que se abateu sobre meu pai. Tive que investigar. Saber o que aconteceu foi essencial para eu poder continuar a viver. Custou o que custará.
Minha esposa tem que saber, pelo menos ela. Ela tem que se preparar para o que estar por vir. O que ela vai enfrentar nos dias terríveis que virão cobrar a sua conta. Só não sei ainda como vou contar. Tenho que explicar desde o começo, tudo. Ela precisa saber de tudo. Tenho que criar coragem para conversar com ela.
***
Meus pensamentos tormentosos não vão me abandonar se eu não levantar dessa cadeira. Uma mensagem de Luciana chega no meu celular:
A sessão de quimioterapia da Mariana já terminou, estamos indo para casa. Você vai conseguir chegar mais cedo hoje?
Desde que, meu pai morreu a doze anos atrás assumi as lojas Lopes. Comandar uma das maiores franquias de lojas de eletrodomésticos e móveis do estado do Ceará não é fácil. Muitas vezes não tenho como chegar no horário que eu gostaria em casa.
Daqui à meia hora estarei saindo meu amor, não se preocupe.
Ela respondeu quase que no mesmo segundo:
Tudo bem. Já saímos. Estamos no elevador, se o trânsito não tiver muito ruim chegaremos antes de você.
São quase dezoito horas, o hospital fica um pouco longe daqui, mas Fortaleza é um inferno nesse horário. Provavelmente elas saindo agora vão levar uma hora para chegar em casa. Quando eu sair daqui vai levar só uns dez minutos para chegar. Hoje estou na loja em nosso bairro, Maraponga, amanhã não terei tanta sorte, estarei na loja do centro.
Deixando o celular na mesa me levanto em direção ao espelho de meu escritório. O grande espelho decorativo toma toda a extensão da parede a minha esquerda onde eu posso me ver de corpo inteiro. Meus quarenta anos me agraciaram com uma barba que ficou grisalha muito rapidamente. Mas desde que todo esse sofrimento começou todo o meu topete já está grisalho também e há cada vez mais cabelos assim na minha cabeça.
Pelo menos isso a Luciana achou legal pintar. Já a barba ela achou um charme os cabelos cinza misturados com os pretos. Acho que vou pintar apenas a parte de trás da cabeça o topete eu até gosto assim.
— Luciana eu sei que nunca contei pra você muitos detalhes do que acontecia com o meu pai, mas...
Encaro-me no espelho tentando imaginar Luciana em minha frente.
— Eu tenho que falar a verdade, eu menti pra você...
Acho que isso vai ser mais difícil do que pensei. Falar para ela tudo que eu descobri sobre a doença de meu pai sem parecer louco. Melhor pensar bem o que eu vou falar. Bem melhor eu ir, já não tenho o que fazer aqui. Desligo as luzes da sala e tranco a porta. Ao passar pelos funcionários da loja já preparando para fechá-la dou boa noite a todos.
***
Só o café me mantém acordado por mais tempo depois que eu chego em casa. Hoje vou tomar menos, não estou tão cansado assim. Apenas uma xícara bem cheia vai ser o suficiente. Como posso começar a explicar?
Talvez!?
Meu amor acredito que já está na hora de você saber a verdade sobre meu pai, pois o que eu vou te contar vai estar relacionado com o milagre que vai acontecer a nossa filha.
Talvez falar milagre seja demais. Eu já perdi a fé em Deus, por isso recorrerei à coisa que levou o meu pai, mas Luciana mantém bem viva a sua fé.
Meu amor eu sei que já sofremos muito, mas Mariana vai ficar boa eu tenho certeza. O que vai acontecer com ela vai ser por minha causa, mas para você entender eu preciso explicar o que realmente aconteceu com o meu...
Nesse momento passa pelo meu corpo um calafrio. Ao levantar o meu olhar percebo que não estou mais na cozinha. Fui levado sem perceber para o meu escritório que fica do lado do quarto de nossa filha. Ele estava aberto? Geralmente o deixo fechado. Nele além de guardar documentos pessoais e da empresa também escondo as memórias de meu pai escritas em seu diário e a imagem da coisa.
Ao me sentar na poltrona não consigo desviar o olhar para a escrivaninha em minha frente. Das três gavetas a minha direita, no meio uma, e mais três a minha esquerda, na última do lado esquerdo guardo a imagem. Está trancada. De alguma forma sinto aquilo me chamar.
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Águas Vivas de Memórias (um conto)
Misteri / ThrillerAbraão vendo sua filha Mariana com pouco tempo de vida devido a um câncer decide seguir o que ele acredita que foi os passos do pai e buscar o sobrenatural para resolver essa tragédia. Será que ele conseguirá salvar a sua filha?