Capítulo 10

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As CorujasUm vozerio sem fim, todavia, acompanhou-nos a retirada. Gemidos partidos das fibras mais íntimas de seres desconhecidos encheram as praias sombrias. Algazarra terrível que enchia-me a alma de terror e assombro! O que seria aquilo? — pensei comigo mesmo sem coragem de olhar para trás. 

— Atafon! Atafon! — mais de mil vozes gritaram a um só tempo. 

— Salva-nos! Arranca-nos deste lodo e desta desgraça! O anjo voltou-se e nós o seguimos com o olhar vitrificado. Então foi que vimos que a estranha floresta negra agitava-se angustiosamente estendendo os braços ressequidos em nossa direção. Na realidade, aqueles galhos semelhantes a garras eram braços dentro da noite. Percebíamos naquelas árvores as almas dos que se paralisaram na forma. Foi aí que o Anjo do Abismo elevou a voz e respondeu: — Queridos irmãos e queridas irmãs em prova; vós que petrificastes a mente no egoísmo e no orgulho, lembrai-vos agora do Divino Poder. Quem sou eu para salvar-vos? Só o Pai em Sua Misericórdia poderá elevar-vos do lodo a que vos alojastes até o sólio de luz em que resplandece nas alturas! Voltai-vos para Ele, implorai-lhe o amparo é a ajuda e a Luz Imortal do Seu Reino de Glória há de penetrar até o coração destas furnas! Perdoai-me se não vos posso ajudar agora, mas em minha fraqueza implorarei ao Pai convosco e Ele que não nos abandona, por certo nos ajudará. A palavra de Atafon provavelmente atravessou os abismos e ganhou a superfície da Terra projetando-se para as esferas superiores, porque alguns segundos após uma chuva de miríades de centelhas prateadas veio descendo terra a dentro até atingir aquelas pobres criaturas de Deus. O ambiente clareou-se de súbito sob a tempestade de luz e então pudemos ver milhões de seres alados que se escondiam na sombra sob as árvores. Corujas esquisitas, de porte avantajado, contemplavam-nos com os olhos fosforescentes. A floresta povoou-se de um momento para outro de milhões de almas prisioneiras da forma. Naqueles olhos de fogo no entanto, nós víamos as características apagadas dos homens da Terra. Senti-me mais assombrado ainda certo agora de que vagava perdido no inferno da inconsciência humana. Uma ânsia incontida de explicações dominava-me o ser. Desejava mais esclarecimentos sobre tudo aquilo que se abatera sobre mim como um pesadelo ou um sonho de loucura. Atafon, percebendo-me o anseio, não se fez rogado, e ensinou: — Nestes abismos, meu filho, a forma, como já lhe disse, ganha a expressão do pensamento de cada um. Modela-se a si mesmo cada espírito que desce ou que sobe. O perispírito ganha no universo sombra ou luz dependendo apenas da direção que imprime à própria mente. Organismo plástico aceita a expressão que lhe dá a força mental. Estas criaturas chumbadas ao lodo ou voando nas alturas escravizadas na forma inferior são responsáveis pela própria direção que deram à própria vida. Amor e ódio nascem em nós mesmos de conformidade com a orientação que demos às nossas energias. A queda ou degradação na forma é um fenômeno comum em todas as regiões do Universo. Não há involução do espírito mas existe a degradação da forma perispiritual. Como sabemos, o perispírito é a mais alta conquista do espírito humano sediado na Terra. O veículo que envolve a alma expressa-lhe os pensamentos e os sentimentos adquirindo vibrações cada vez mais elevadas ao impulso de seus estímulos interiores. Essas criaturas que parecem abandonadas de Deus são todavia) filhos bem amados de sua Justiça. Se não houvesse leis sábias que as amparassem na queda, há muito tempo já haveriam desaparecido no turbilhão do cosmos. Aprisionadas nas formas vegetais, na animalidade, nas aves ou nos minerais, estacionam apenas no tempo até que nesse processo de gestação tenham oportunidade de reconquistar os degraus que perderam na descida. O que parece a infinita desgraça não é mais do que a Infinita Misericórdia. Contemplei Atafon assombrado. Não eram somente as anotações repletas de sabedoria que me empolgavam. A cabeça do Anjo iluminara-se interiormente e centelhas de luz irradiavam-se-lhe da mente com profunda intensidade. Tornara-se mais belo e mais puro. Verifiquei que as "aves" ocultas na floresta também pararam de gritar, extasiadas ante o fato extraordinário. Maravilhosa. luminosidade derramara-se-lhe da frente, do peito, dos braços e das mãos. Em plena testa, uma rosa de mil pétalas cintilava como fonte de sublime beleza. O Anjo compreendeu-nos o assombro porque tentou apagar-se mas não o conseguiu tanta era a sinceridade com que se referira à Obra de Deus. As "corujas", pois que aqueles seres pareciam corujas, estavam magnetizadas, sonambulizadas, olhos vítreos voltados para Atafon. Orcus aproveitou-se da hora e aconselhou-me: — Examinemo-las agora que estão estáticas. Atafon fez-nos um gesto de assentimento e então aproximamo-nos de uma daquelas corujas estranhas e negras, a de porte mais avantajado. Notei que o corpo era recoberto de pêlos e que exibia duas enormes asas semi-peladas como morcegos. O rosto lembrava o ser humano e a cabeça revestia-se também de penugem. Não tinha braços mas firmava-se sobre duas pernas e dois pés, chatos como os dos gansos ou marrecos. Os olhos esfogueados contemplavam fixamente Atafon. Havia neles a fixidez da inexpressividade da vida que parará. Sonâmbulos, não nos percebiam a nós, Orcus e eu. Passei-lhe a mão com carinho na cabeça, estiquei-lhe uma das asas e acompanhei admirado as nervuras e as linhas das fibras perispirituais. Realmente, era uma obra de arte como forma, muito embora estivesse ele caído nas regiões inferiores do próprio eu.. Estudei-o detidamente com o olhar e tremi. Como podia um ser que outrora fora humano na Crosta da Terra ter atingido tal ponto da escala involutiva da forma animal? O espírito, é certo, passa pela fieira da animalidade como nos ensinou mestre Allan Kardec ("A Gênese ) e isso nós compreendemos perfeitamente, contudo sabemos que o fenômeno se dá na escala evolutiva ascendente. Ali, porém, diante de meus olhos eu encontrava o fenômeno contrário, o espírito que retornava ao seio da animalidade caindo de forma em forma em escala descendente, que presumivelmente o levaria, degradante, às origens do ser como vida perispiritual. E a consciência? Qual a situação da consciência daquelas criaturas encarregadas em veículos inferiores? Orcus percebeu-me as indagações mentais porque aduziu: — A consciência meu caro, como o caramujo que se esconde na casca, oculta-se na "inconsciência" e aí permanece por séculos e séculos! Uma estranha angústia alcançou-me o peito e o coração. Aquilo semelhava-me abismo mais pavoroso que todos os abismos. Aquele mergulho na forma inferiorizada, decadente e defeituosa, simbolizava-me agora cárceres escuros onde a inteligência, a razão e a consciência ficavam sepultadas. Não seria o nada? O não ser? Orcus sorriu amigavelmente.

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