Meditações nas Profundezas
Fiquei pensando ainda na forma que precipitada em si mesma descia ao mais fundo da Terra perdendo-se lentamente. Resultado da decadência do espírito que, indiferente, vivera no mundo esquecido de que Deus que dera a vida também organizara o Universo mediante leis inexoráveis. De nada adiantava rir das leis divinas, Elas existiam e funcionavam de maneira perfeita. O pensamento que constrói o universo interior também podia determinar a precipitação no inconsciente sem fim... Como esquecer que em nós permanecem os germens da vida eterna e da morte aparente? Imensa tristeza estampou-se em minha alma. Orcus, porém, veio em meu socorro, ensinando: — Meu filho, não se emocione nem se perturbe. Acima de nós está Deus que zela por todos. As criaturas não estão perdidas e se redimirão um dia a si mesmas ... Nas trevas mais densas se esconde a luz que reaparecerá no futuro. Esperemos o amanhã com o Senhor que é a verdadeira liberdade. Senti-me voltar ao ambiente sob o influxo daquelas palavras de fogo. Orcus, humilde e simples, sereno e bom, era a fonte da vida espiritual que me acompanhava. Olhei-o agradecido e senti que duas lágrimas escorriam-me pelas faces silenciosas. Atafon enviou-me de maneira sutil vibrações inexprimíveis de amparo que me tocaram o coração. À nossa volta continuavam a passar os seres estranhos que habitavam aquela massa gelatinosa como se houvessem nascido ali e vivido ali eternamente. Os polvos de cem braços e olhar tristonho movimentavam-se com enorme facilidade e figuras nunca vistas na terra apareciam e desapareciam a cada instante surpreendendo-nos a visão. Tudo nos convidava ao estudo e à meditação. Mas a mente sobrecarregada de surpresas principiava a negar-se a grandes divagações. Uma poderosa força se abatera sobre mim e compreendi que a inferioridade do espírito nos arrasta sempre para as zonas da casa mental. Tentei observar melhor o ambiente a fim de aprender mais e compreender mais, Atafon, no entanto, fez-me um gesto indicando-me que deveríamos acompanhar em silêncio mental aquele ser meio-homem e meio-peixe que comandava milhares de outros seres que haviam perdido o comando de si mesmos. Ainda porque nos aproximávamos de seu ambiente de trabalho. 28 - Na Casa de NetunoTudo era verde ali dentro. Uma caverna comum sem grandes atrativos. Larga, porém. Imensa. Pareceu-me ver bocas e orifícios dentro dos quais olhos fuzilantes nos contemplavam. O que seria aquilo?
— Somos os nerodianos — exclamou à guisa de explicação, o estranho ser. E aqui mantemos alguns companheiros que descansam de suas lutas na superfície. Como a caverna estivesse aparentemente vazia, e fosse ali a gelatina mais verde, não deixei de esboçar um sorriso de incredulidade. Nerodiano, todavia, não se fez de rogado.
— Vejo que o moço que vos acompanha — falou dirigindo-se a Atafon — ainda mantém os laços que o prendem à superfície! Esquisito que possa ter vindo até os domínios dos Dragões. Não possui credencias para isso! Senti terrível pavor apossar-se-me da consciência. Era certo que todos nós estávamos nas mãos daquelas criaturas. Conquanto imaginasse o poder de que poderia dispor Atafon ou Orcus em tal circunstância para defender-nos não imaginava contudo a força de que disporiam eles.
— É amigo nosso, com ingresso livre nas profundidades por ordem Superior — esclareceu Atafon com humildade.
— Não discuto ordens superiores — retrucou Nerodiano, mas estranho verificar que ele não possui as condições de superioridade que caracterizam os seres angélicos ou simplesmente iluminados que vêm à nossa zona.
— A condição dele — ajuntou Orcus — é a do aprendiz que vem observar para dizer aos homens a grande obra de Justiça realizada pelos Dragões.
—Ah! agora compreendo! — disse Nerodiano balançando a cabeça. Até que enfim fazem-nos justiça! A explicação de nossos benfeitores tiveram o dom de acalmar-lhe a mente embotada satisfazendo-lhe a vaidade.
— Se é assim, acrescentou, terei prazer de mostrar-lhe aqueles que descem para subir. Dizendo isso, encaminhou-nos a escuro túnel onde jaziam criaturas aparentemente mumificadas. Deitadas no solo com a face para cima. Notei espantado que todas elas tinham a forma de peixes. A cauda e as barbatanas. Apenas a cabeça era ainda um vislumbre da humanidade. Vestidos de peixe! Atafon tomou a palavra e ensinou: — Aqui se passa o mesmo fenômeno que vimos com os espíritos rãs, apenas acontece que os rãs que já perderam, as pernas e as mãos, desceram mais e vieram se localizar nestas regiões. Resta-lhes da forma humana a fisionomia. A mente deles porém, está num estado mais profundo ainda de estagnação. Enquanto Atafon ensinava havíamos saído do túnel e observávamos outros túneis onde inumeráveis seres daquelas condições se enfileiravam. Nerodiano aprovou as afirmativas de Atafon como quem as considerasse indiscutíveis.
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O Abismo
SpiritualNeste livro o autor nos conduz por um mundo diametralmente oposto de tudo aquilo que conhecemos. Desespero, dor e angústia assombram, tal a sua narrativa dantesca. À proporção que vai revelando os abismos e sub abismos, novos e indescritíveis quad...