Desafios diários

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Já faziam 14 anos que Borislav havia levado um tiro na cabeça, o tiro o fez perder toda a sua memória se esquecendo do seu nome, de sua família, dos seus dezenas de idiomas que ele falava fluentemente e de nossas aventuras. Agora ele está sob os meus cuidados e os de Rogério que agora já estava aposentado (ele tinha idade para ser meu pai), eu trabalhava de noite vendendo acarajé ,maniçoba e mugunzá nas ruas de Salvador, mas durante o dia ensinava Borislav a ler, se vestir, se calçar, enfim, eu adotei um filho da minha idade, porém fazia tudo com calma e amor.

- Borislav, Borislav, acorda é hora de tomar o café da manhã- disse acordando Borislav e o acompanhando até o banheiro.

- Não quero escovar os dentes- disse Borislav batendo os pés no chão.

- Vamos Borislav, se você escovar eu te dou um presente- disse tentando convence-lo a escovar.

- Não acredito em você, toda vez você me promete um presente e nunca me dá- Disse Borislav como se fosse uma criança mimada.

- Mas dessa vez é verdade, eu tenho um presente pra você- disse pegando um presente que estava escondido e mostrei para Borislav- Feliz aniversário!

- Oba! Quero olhar!- disse Borislav indo em minha direção, mas eu mandei escovar os dentes, então, ele escovou rapido e abriu o presente.

Ele ficou muito feliz quando abriu o presente eram carrinhos de colecionador, Borislav me abraçou dizendo que "não precisava se incomodar". Fiquei feliz por ele está feliz, agora completara 34 anos de idade, mas a mente era de um menino de 8 anos.

Rogério chegou com peixe assado que ele tinha comprado na feira e começou a fazer o arroz e feijão. A casa estava limpa apesar de só haver homens morando nela, isso porque sempre gostei de casa arrumada pois odiava ratos, foram eles que devoraram a nossa comida na guerra.

As pessoas já sabiam da nossa sexualidade e constantemente mandavam as crianças jogarem pedras no telhado quando eles mesmos não jogavam pedras no telhado, em nós e em quem nos vinha visitar. Nossa rua era chamada de rua dos Chibungos (como chamam gays na Bahia) por nossa causa as pessoas tinham vergonha de morar em nosso bairro e principalmente em nossa rua, mas essa tradição de gay do bairro e gay da cidade durou até os anos 90.

Nunca mais eu havia saído da Bahia depois das contendas envolvendo o general, o psiquiatra, Lucas e Borislav. Mesmo com tanto preconceito e perseguição eu conseguia trabalhar e cuidar de Borislav, não era fácil, mas era a nossa vida, toda à noite trabalhando na rua enfrentando a sociedade.

- Boa noite, quanto é a maniçoba?- disse um homem de chapéu.

- Bem, tem o prato grande e o pequeno, você quer qual?- disse não reconhecendo o homem.

- Rodolfo, sou eu, Lucas- disse Lucas tirando o chapéu.

- Eiai! Cara como você tá?- perguntei ignorando a nossa última discussão há 14 anos atrás.

- Eu estou bem, minha esposa deu à luz a dois gêmeos, eu tenho 5 filhos e uma filha- disse Lucas.

- Que legal!- falei feliz por ele.

- E você? Quantos filhos você tem?- perguntou Lucas animado, mas fiz uma expressão de triste, então, Lucas desfez o sorriso- Esqueci, você é diferente.

- Bem, mas você vai querer de qual prato?- perguntei com um clima totalmente deprimente.

- Eu quero um prato grande pra viagem- disse Lucas, então, resolvi embalar- Você está morando onde?

- Na rua dos Chibungos é só perguntar que todo mundo sabe, a rua tem esse nome por causa de mim e do Rogério, mas não é o nome verdadeiro- disse dando a maniçoba para Lucas.

- Você tá precisando de alguma coisa?- perguntou Lucas.

- Não, está tudo bem- disse em tom desanimado.

- É mesmo, amanhã eu vou pra lá- disse Lucas dando o dinheiro e saindo dali.

De fato eu teria que me acostumar com coisas como as que Lucas falava para mim, afinal de contas. Sair do armário em 1964 não era tarefa fácil, mas essa era a minha vida e a vida de muitos, tenho certeza que um dia o preconceito será algo a ser falado apenas nos livros de história.

Cheguei em casa e Rogério já estava dormindo, porém Borislav estava até tarde assistindo televisão, então, desliguei a televisão e levei Borislav para escovar os dentes. Coloquei o pijama preferido dele, me deitei ao lado dele e desliguei a luz, apesar de não rolar nada, sempre dormia-mos de conchinha, fechei os olhos, mas acabei abrindo os olhos novamente pois ouvi um barulho de machado na porta e várias vozes do lado de fora dizendo: "Bora matar esses boiolas do caralho".

Apaixonado por uma divindade- LIVRO  IIOnde histórias criam vida. Descubra agora