[Narrado por Eric Lluv]
O ERIC, O ERIC GAROTO de quase 19 anos, se perde um pouquinho a cada dia que passa em que vou me tornando cada vez mais o Príncipe Eric e o futuro rei de Aurora. Esse Eric que ainda tento ser se perdeu em partes quando, aos 4 anos de idade, descobri que meu pai não viria me dar boa noite não porque estava lutando com tropas inimigas no Front, como eu achava, mas porque ele já não podia mais lutar com tropas inimigas no Front, pois estava morto. Esse Eric se perdeu quando, aos dez, sofreu uma repreensão talvez até exagerada da mãe por correr, na escola, como se não houvesse amanhã, atrás de um homem que estava maltratando um garotinho que era seu amigo, no intuito de confrontá-lo. Você é o Príncipe de Aurora, seu dever não é correr atrás de pessoas para confrontá-las, minha mãe disse, no que eu respondi: Nosso dever não é cuidar da população, mãe? E ela me deixou de castigo. Eric se perdeu um pouco quando, aos 15, precisou ir para o Forte Real aprender a lutar, quando na verdade queria ser artista, talvez pintor ou escritor (sempre gostou de ler e de escrever). A cada dia em que seus deveres se tornam cada vez mais sufocantes, Eric se perde. E ele quase se foi, por completo, no ano passado.
Mas, apesar das pequenas mortes, algumas coisas fazem com que eu não seja somente o príncipe de Aurora. E agora, mais do que tudo, eu gostaria que o príncipe Eric me ajudasse com sua força a entender o que está acontecendo. Só que, agora, quem está vivendo sou eu, e eu, sendo apenas o Eric suposto fazendeiro do Sul, não sei o que fazer.
Estou absurdamente assustado. Talvez mais do que quando fui sequestrado em pleno noivado com Enrique. Claro que são ocasiões completamente diferentes, já que o sequestro me fez pensar o quanto, embora os muros de Aurora digam o contrário, minha vida, a de minha mãe e a de qualquer um da realeza é frágil. Depois da Guerra dos Sete Dias, nada de muito perigoso aconteceu em Aurora, a não ser algumas rebeliões em pontos específicos da fronteira com Victoria, principalmente no Front; isso fez com que eu não conhecesse o sentimento de ser de fato atacado por um inimigo e ficar entre a vida e a morte. Agora sei que não quero mais sentir isso, mesmo que minha vida no futuro seja pautada em ficar em perigo por ser o futuro rei de Aurora.
Estou assustado agora, mas é um sentimento de pavor diferente. Estou assustado quase como quando fico assustado com a possibilidade de perder o controle novamente e destruir uma fazenda inteira ou uma cidade inteira com os benditos poderes herdados do meu pai; estou assustado com o que pode acontecer comigo e Ben e o que pode acontecer conosco foge completamente do meu controle e, não tendo controle, fico em desespero, como vocês provavelmente já perceberam.
E, além disso, não consigo dissociar as coisas e as lembranças de um passado recente e traumático com Joseph que surgem e me fazem querer sumir, ainda que os olhos elétricos de Ben me acolham e me façam querer ficar. Ele é diferente, digo para mim mesmo, embora Joseph também fosse – e continuou sendo até que não pudesse mais ser nada. Mas Ben é realmente diferente.
Nessa semana com ele, já sei que ele é um ladrão com princípios, pois não me roubaria no estado em que estou. Sei que ele não se importa com a grande maioria das pessoas, mas ele se importa comigo, ou com a versão simplificada de mim que ele conhece. Sei que ele não gosta de mim, quero dizer, ele não gosta do que sou de verdade, o príncipe filho da rainha que, infelizmente, não olha para todo o reino de forma igual; sei que, por isso, por essa abstenção da Coroa em determinadas partes do reino, como aqui nas Terras Altas, ele rouba para alimentar a família, e isso é extremamente belo; sei que não parece, mas ele é sensível e gosta de ficar sozinho observando as estrelas e o lago. Sei que ele fala demais quando está comigo, e que ele me faz sorrir sempre – e isso é o que mais me faz querer ficar junto dele dia após dia, pois ele me faz sorrir e perceber que a vida é mais que um monte de obrigações. Não que eu ainda não tenha que voltar em algum momento para Aurora para descobrir o que está por trás do sequestro e de todo o resto e voltar a ser quem eu era antes e provavelmente dar seguimento ao casamento com Enrique e me tornar, no futuro, o rei de Aurora. Mas, além de tudo isso, estar próximo de Ben me dá uma paz inexplicável e, apesar do receio ainda presente da chuva e de todo o resto que pode acontecer, eu não me sentia tão tranquilo e tão livre dos sentimentos de desespero e apavoramento que meus poderes me causam desde muitos anos atrás. O fato, em resumo, é que Ben me mostrou dois lados da vida que eu sempre quis conhecer: o lado do anonimato e o de ser normal, no sentido específico da palavra.
Infelizmente, não sei onde esses dois fatos em específico vão me levar, pois eu mesmo, ainda, não sei por que resolvi mentir para ele desde o princípio. Talvez fosse porque eu havia percebido naquele momento que essa era a oportunidade que eu tinha de tentar viver algo sem ser o Príncipe Herdeiro de Aurora. E agora carrego o fardo de, talvez, esse meu eu verdadeiro não ser o suficiente para chamar atenção de seu afeto – e vou ter que lidar com isso.
De todo modo, a verdade é que estou desesperado, pois, depois de ontem, depois do beijo, não sei se quero continuar assim, vivendo essa mentira e cultivando uma relação que talvez nunca possa acontecer de fato. Existem tantos fatores que atrapalham tudo que, quando paro para listá-los, sinto vontade de gritar; de ir ao mirante e gritar para as estrelas e para o lago. Um. Ele só conhece uma mentira sobre mim e pode não gostar da verdade. Dois. Sou o príncipe de Aurora e ele odeia a realeza. Três. Eu sou a merda do príncipe de Aurora e ele é um plebeu (o que não é nenhum problema para mim, mas é para o reino em si). Quatro. Nem sei por que estou listando isso; talvez ele só estivesse confuso demais ontem e tenha me beijado sem perceber o que estava fazendo.
Sorrio ao pensar nisso. É engraçado como ainda assim eu continuo me enganando, na tentativa de controlar as coisas.
Sinto sua aproximação, e quero virar para trás e ver seu rosto; seu cabelo bagunçado e seu sorriso torto, mas não o faço.
— Bom dia — Ele diz.
— Olá.
— Achei que tivesse fugido. — Ele diz e depois parece se arrepender do que disse.
Eu acordei de madrugada e caminhei até o mirante para tentar pensar. Se por um lado não consegui chegar a uma conclusão sobre tudo o que está acontecendo; por outro, assistir ao nascer do sol atrás dos cumes das montanhas foi reconfortante.
— Não, eu só... — não sei o que dizer.
— Entendo — Ben diz — Ah... me desculpe por...
— Não — o interrompo — não precisa se desculpar.
— É que, sei lá — Ele sorri — Não sei o que aconteceu comigo.
Eu sei e quero dizer que senti o mesmo, mas estaria apenas alimentando um sentimento que não pode ultrapassar determinados limites.
— Tudo bem. E obrigado por ontem. — Ele assente. — Obrigado pela história também.
Ben sorri.
— Ela deveria estar em algum livro oficial do reino. Muito bem construída, ela.
— Sim, muito.
— É sério. Quem quer que a tenha criado deve ser um gênio incompreendido.
— Com certeza - digo e sorrio. Tenho não olhar para ele, mas é muito difícil. O tempo parece passar rápido demais enquanto nossos olhos estão cruzados. Ele olha para o lago ao longe.
— Pensei que a gente podia ir à casa de minha avó.
Concordo e voltamos para a cabana dele a pé sem trocar muitas palavras. Estamos em um momento estranho demais para falar sobre muitas coisas. Primeiro, além de Tamara, achei que nunca fosse falar com ninguém sobre meus temores de chuva e, apesar de não ter dito nada a Ben, por não conseguir falar e não necessariamente por não querer falar, ele já sabe muito mais sobre isso que qualquer pessoa que passou pela minha vida. Segundo, o beijo parece um fantasma que paira sobre nós. Nem eu nem ele parecemos estar preparados o suficiente para falar disso – e isso em si já é algo estranhamente estranho e já significa muito mais do que deveria significar.
Nunca tive problemas com as pegações reais que eu promovia em Aurora, as quais tiveram que acabar com o contrato de casamento com Enrique. Mas, apesar disso, o beijo em Ben parece ter um peso muito maior que qualquer beijo em qualquer outro jovem e nobre rapaz do reino. Talvez esse seja o problema.
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A Canção do Rei [Concluída]
FantasyE se os contos de fadas fossem diferentes? "A felicidade está sempre a um passo de distância, basta apenas que tenhamos coragem de dar um passo a frente" O príncipe Eric Lluv descobriu há pouco tempo que herdou os poderes destrutivos do pai e agora...