a número nove

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Março de 1975

   Você consegue fazer isso. - Papai disse do outro lado da cabine, tentando me encorajar.

   Eu fechei meus olhos, respirei fundo e me concentrei ao máximo, olhando as pecinhas de lego em cima da mesa. Senti o sangue descer por meu nariz enquanto o lego derretia, virando uma gosma colorida e depois se transformando em um bichinho que parecia um ursinho.

   - Excelente nove! - ele diz sorrindo. Parecia estar orgulhoso de mim, fiquei feliz com aquilo. - Henry, acompanhe ela até o quarto arco-íris. Deixe-a brincar 30 minutos a mais lá.

   Saio da sala depois de papai dar as ordens e vou caminhando pelo corredor com Henry segurando a minha mão.

   - Você foi muito bem hoje. - ele era como um irmão mais velho para mim. Me tratava melhor que as outras crianças.

   - Obrigada. - sorrio e chegamos ao quarto arco-íris. Vou direto para o meu brinquedo favorito.

    Eu colocava o circulo de madeira no tablado e brincava de fazer sumir ou aparecer os pinos que me ajudavam a chegar no número que eu queria. O dois e a três diziam que aquilo era trapaça, mas eu respondia que eles também trapaceavam usando a mente pra controlar o circulo.

   Me divirto ali mesmo durante meus 30 minutos, até que Henry me leva até meu quarto.

  - Boa noite. - ele dá um curto sorriso, um beijo em minha cabeça e sai fechando a porta.

   Me sento na cama e fico pensando como seria legal ter mais um tempinho para brincar. Fecho meus olhos e imagino o quarto de brinquedos, cada detalhezinho. Volto a ficar de olhos abertos e percebo que estou lá.

   Sorrio e me sento para brincar com os círculos de madeira.


dias atuais, mundo invertido

   O monstro se aproximou de mim o suficiente para investir suas garras afiadas contra meu braço e eu as transformei em borrachinhas, fazendo no máximo cosquinhas sob minha pele. Olho para sua boca e faço com que ela derreta, junto com todo o resto do seu corpo que se reduz a uma gosma preta e borbulhante. Depois de o eliminar, vou até Barbara que já estava sem vida. Meus olhos se enchem de lágrima e eu a abraço.

   - Me desculpa Barb. - digo com a voz trêmula e a respiração descompassada. - A culpa é minha. - fico olhando para seu rosto e imaginando que ela estaria bem se eu tivesse chegado mais rápido, se o curativo estivesse mais bem feito para não pingar sangue, se eu não tivesse insistido para ela ir conosco. Era tudo culpa minha.

   Algo que parecia um tentáculo começou a envolver o corpo de Barbara e eu ouvi o que parecia outro bicho daquele que a matou. Eu precisava ir embora, mas não queria deixar minha amiga aqui. O monstro apareceu, acompanhado do que parecia ser sua versão de quatro patas. Haviam muitos ali e eu não haveria nenhuma chance, pois aquela foi a segunda vez que usei meus poderes depois de tudo que aconteceu. Com dificuldade, fiz um portal que me levasse de volta ao mundo normal e me certifiquei de o fechar depois que passei.

   Surgi na piscina cheia de água da casa do Steve e sai de lá tossindo. Meus olhos ainda estavam cheios de lágrimas e minha visão embaçada por causa disso. Fui embora andando, toda enxarcada, com resquícios da gosma daquele lugar em minhas roupas e com a imagem do corpo de Barb na minha mente. Poderia ter sido eu no lugar dela.


   Cheguei em casa e tudo estava escuro. Minha mãe estava dormindo e eu agradeci por ela não precisar me encontrar naquele estado. Não iria conseguir falar nada para ela.

   Eu tomei um banho, coloquei meu pijama e me deitei na cama, abraçando meu ursinho. Enterrei minha cabeça no travesseiro e dormi.


   A noite foi repleta de pesadelos. Acordei com meu pijama completamente úmido de suor, a respiração ofegante e chorando. Não iria conseguir ir para a escola nesse estado, não saberia explicar para a Nancy o que aconteceu, não ia ter a capacidade de esconder a culpa que sinto pelo sumiço do Will e pela morte da Barbara.

   Tentei voltar a dormir, mas sem sucesso algum.

   - Bom dia meu amor. - minha mãe entrou no quarto e estranhou ao me ver deitada àquela hora. Sempre fui muito certinha com meus horários. - O que aconteceu com você filha?

   - Eu acho que tô um pouco doente. - digo segurando o choro e torcendo para ela me deixar ficar.

   - Você está suando frio e meio quentinha mesmo. - ela diz enquanto pousa a mão em minha testa. - Vou separar uns remédios para você tomar e deixar lá em baixo tá bom? Toma um banho, descansa e come alguma coisa pra ficar melhor.

   - Obrigada mamãe, eu te amo. - a abraço e sinto uma lágrima teimosa escorrer por minha bochecha.

   - Também te amo muito filha. - ela beija minha testa e sai, indo para seu trabalho.

   Eu apenas fico deitada, olhando para o teto e pensando em tudo que havia acontecido. Só queria poder voltar no tempo e evitar todos os problemas. Acabei finalmente dormindo e dessa vez foi um sono gostoso. Que durou praticamente o dia todo.


   - Mary!! - escutei alguns gritos e a campainha de casa tocar incessantemente. Acordei assustada com esses barulhos e coloquei um casaco para ir até lá embaixo ver quem era.

   - Eddie? O que aconteceu? - dou espaço para que ele entrasse e depois fecho a porta.

   - Muita coisa. - ele me abraça e depois senta no sofá. - Por quê não foi na escola hoje?

   - É que aconteceu algo comigo ontem e... - comecei a chorar e ele se levantou, me puxando para um abraço. - Preciso te contar uma coisa, mas você tem que manter segredo e prometer não se afastar de mim.

   Comecei a falar meio receosa e prestando atenção em cada reação que ele esboçava. Contei sobre o laboratório, sobre meus poderes e o que tinha acontecido com a Barbara. Ele ficou um tempo em silêncio, olhando nos meus olhos e tentando acreditar se aquilo realmente era verdade ou se eu estava ficando louca.

   Revirei os olhos, sabendo que precisaria provar. Então peguei uma faca e levantei a barra da minha blusa, deixando minha barriga de fora. Respirei fundo, fechei meus olhos e deslizei rapidamente a lâmina afiada sob minha pele, fazendo com que o sangue escorresse no local.

   - Mary você pirou de vez?! - ele se aproximou assustado e confuso.

   - Espera Eddie. - digo fechando os olhos e fazendo com que a ferida cicatrizasse e não houvesse nenhum resquício do machucado.

   - Meu Deus o que foi isso? - ele enterrou as próprias mãos no cabelo e ficou me olhando. Sabia que não deveria ter contado, agora ele vai ter medo de mim. Senti as lágrimas surgirem em meus olhos e Eddie chegou mais perto, sem desviar seus olhos dos meus. - Então você é tipo uma bruxa? Isso é maneiro pra caralho!

   - É sério que não quer se afastar de mim? - pergunto sorrindo e sentindo um grande alívio.

   - Lógico que não sua bobona! Você é incrível. - ele me abraça, mas consigo sentir a tensão em seu corpo. - Os policiais federais apareceram na cidade hoje, eles encontraram o corpo do Will e...

   Simplesmente tudo fica mudo e eu entro em estado e choque. O Will morreu.

Number Nine - stranger thingsOnde histórias criam vida. Descubra agora