CAPÍTULO UM| o belo estranho

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"Algumas coisas são grandes demais para serem vistas

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"Algumas coisas são grandes demais para serem vistas. Algumas emoções enormes demais para serem sentidas." — Neil Gaiman.

Você me conhece, já nos encontramos antes

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Você me conhece, já nos encontramos antes. Eu possuo muitos nomes. Sou o rei dos sonhos e dos pesadelos. Eu sou Morpheus, Sonho dos Perpétuos. Quando o mundo desperto a deixa sobrecarregada e tensa, o sono a traz para mim. Para o meu reino. Deixe-me ser o seu guia.


A cabeça de Violet desponta do resto da multidão como alguém que desperta de um sono profundo. Mesmo que seus dias fossem todos iguais desde que ela se lembra, nunca houve voz como essa. Em nenhum outro momento. Acima do burburinho comum da multidão em que seu corpo se perdia, a voz ecoa como um mantra, profunda e macia feito seda, destacando-se das demais. Parecia vir de dentro da sua cabeça, como um encantamento.

Seus olhos curiosos buscaram algo diferente no cenário sempre igual, qualquer mínimo detalhe. Pela primeira vez, algo estava diferente. Violet soube que a voz pertencia àquela figura incomum.

Os feirantes desesperados berravam seus preços e discutiam descontos com clientes, seus caixotes de frutas jaziam esquecidos no chão desde que ouvira a primeira palavra. A multidão agora tornava-se um borrão conforme os pés de Violet avançam na direção do homem.

Alto, magro, cabelos extremamente pretos e desgrenhados, roupas igualmente pretas. De onde estava, podia apenas ver suas costas e ouvir sua voz, que lhe causava a mesma sensação de sentir a areia macia e quente da praia debaixo dos pés. Sua presença era reconfortante e acolhedora. Essa era a diferença entre o ontem e o hoje, nenhum acontecimento durante sua existência gerava qualquer tipo de sentimento ultimamente, fosse ele bom ou ruim. Mas ele... Havia algo fora do comum.

Então, finalmente, ela viu os olhos. Intensos e profundos, analisando cada átomo que formava o cenário entre eles, tão expressivos. Seus olhos percorreram a multidão até ela e então uma sobrancelha se ergueu, curiosa. Foi nesse momento que o mundo ao redor desapareceu para ela.

Ele segurava uma pequena urna de porcelana pintada a mão, analisava os detalhes delicados que formavam espirais de ramos floridos, verificava se o encaixe da tampa ainda funcionava bem. E agora analisava ela.

O que aconteceu a seguir foi em questão de segundos. Durante um piscar, o homem sumiu e Violet não o encontrou mais em volta, mas ainda havia aquela sensação estranha no fundo de seu estômago, uma coisa primitiva e instintiva, impulsionando suas pernas na direção correta e para fora do cenário comum. Ela seguiu por vielas e dobrou esquinas até encontrar a margem do bosque onde acabava o cenário suburbano, e lá estava ele. Caminhando calmamente em direção ao vale que ela sempre só observou de longe.

Por que nunca tinha deixado a feira antes? Por que nunca se aventurou a explorar os arredores? Se todos os dias eram iguais para ela, por que não fazer algo diferente desta vez?

Com o peito cheio de uma determinação nunca antes sentida, embora os joelhos tremessem, Violet marchou na direção do vale sem olhar para trás. Quando ambos os pés tocaram a grama macia e ainda úmida pelo orvalho da manhã, cada veia e poro dela pareceu inflar com uma sensação totalmente nova, mas satisfatória. Uma gargalhada escapou de sua garganta.

As lâminas de grama acariciavam a pele de suas panturrilhas conforme avançava, a queimação dos músculos não importava. O sol parecia mais quente, a brisa mais fresca, e seu corpo parecia sentir as coisas com mais clareza. Era arrebatador. 

Mais alguns passos foram o bastante para que ela alcançasse novamente as costas do homem que sussurrara em sua cabeça mais cedo, ele ia muitos metros a frente. Era curioso para Violet como as divisões funcionavam nesse lugar, como era possível que um vale cheio de vida se transformasse em uma terra morta e cinzenta.

A sensação dessa vez foi diferente, seus sentidos ainda captavam tudo ao redor com uma sede insaciável, porém entendeu que aquilo já não pertencia mais a ela e sim a ele. Aquele era o limite cujo ninguém ousava ultrapassar. O instante em que seu sonho deixa de ser particular e se torna simplesmente O Sonhar.

Por trás da barreira visual, Violet não tem mais a percepção daquele ambiente como uma terra morta. Há pedra sobre seus pés, vozes e algazarra de crianças brincando perto, o som de um córrego abaixo e o sol não é quente ou claro demais. A ponte leva em direção a uma pequena cidadela, e então a estrada continua na direção de um enorme palácio. Tudo é deslumbrante, inclusive as criaturas. Alguns são humanos, outros, nem tanto, ela percebe formatos diferentes de orelhas, cascos fendados e animais que — ela supunha — não devessem falar.

Nenhum deles deu bola para Violet, estavam alheios em seus próprios mundinhos pessoais, presos em seus sonhos, assim como ela até então. Passou despercebida por cada uma das criaturas, outras lhe desejaram bom dia e seguiram seus rumos, mas o que entristecia Violet era que não conseguia mais enxergar o homem. Não conseguia distinguir sua figura das demais nesse novo ambiente. 

— Por que está me seguindo?

A voz surgiu de repente, assustando-a, sussurrada perto demais de seu ouvido agora tão sensível. Violet girou sobre os calcanhares e deu de cara com o rosto dele, pouco acima do seu, coberto de desconfiança.

— Quem é você? — ele questionou — Como conseguiu sair sozinha do sonho?

Violet foi incapaz de responder, sua boca abria e fechava sem emitir som. Como explicaria algo que sequer ela mesma sabia? Não entendia o que acontecera, nem o porquê. Apenas soube que podia segui-lo e, por pura curiosidade, o fez.

Impaciente, o homem tira do bolso do sobretudo um saquinho de couro preto, seus dedos são ágeis ao tirar um punhado do que ela identificou como areia de seu interior e estendeu a mão aberta perto de seu rosto. Com um sopro dele, a voz dentro de sua cabeça retornou, a areia atingiu seus olhos, nariz e língua, mas não foi incômodo.

— Volte para o seu lugar, mortal.

E tudo se tornou escuro.

𝐓𝐑𝐀𝐆𝐀-𝐌𝐄 𝐔𝐌 𝐒𝐎𝐍𝐇𝐎, The SandmanOnde histórias criam vida. Descubra agora