Tudo começou com a brisa em meu rosto. O cheiro da maresia persistente lembrando a infância na beira da praia em dias ensolarados e tardes com água gelada para abafar o calor insuportável. Quase podia sentir aqueles dias tranquilos voltarem a mim quando o balançar do barco ativou a lembrança do presente e abri meus olhos para uma cena que havia se tornado habitual para mim nos últimos anos. Dei de cara com o mar: imenso e inabalável.
O vento soprava e o sol queimava, nada de diferente naquele cenário que estava se estendendo mais do que de costume na viagem atual. Era uma rota simples, ainda que longa, mas eu deveria saber que algo daria errado quando o ferimento de arpão em minha batata esquerda começou a latejar dias antes de sair da terra para me jogar nos braços de meu amigos mais antigo. O barco que usava para trabalho e casa, Glauco era seu nome, e tão fiel a mim quanto uma figura inanimada pode ser.
Deveria ter seguido a dica daquele latejar incômodo antes de novamente jogar-me ao mar. Mas fui imprudente como um cachorro velho, confiando naquele que jamais havia me deixado na mão e logo vi-me perdido no mar. Glauco tinha finalmente começado a apresentar sinais de sua idade, o uso intensivo o tirando o funcionamento sempre recheado de vitórias. Nem mesmo uma tripulação treinada e de confiança extrema havia sido capaz de nos tirar daquela enrascada gerada por um barco sem rumo. Era quase como se o velho voador dos mares tivesse criado vida própria e optado por permanecer naquele meio de mar pra sempre. Talvez ele esperasse por um funeral em sua casa eterna. E, olha, seria algo digno, mas eu não poderia deixar minha tripulação toda se perder junto de Glauco.
Quanto a mim? Morreria junto dele. Era meu amigo e companheiro, eterno irmão. Mais do que isso, era um membro da tripulação e nenhum capitão deixa sua equipe de lado. Minha tripulação não havia sido deixada sozinha, com botes para levar todos de volta à costa em segurança, mas Glauco era tripulante também e eu não tinha a capacidade de deixá-lo pra trás.
Eu estava perdido no mar, mas não estava sozinho. Tinha Glauco ao meu lado e junto dele sabia poder sair de tudo.
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Um desafio de escrita perdido pelo tempo e espaço
RandomUma coleção de pequenas histórias não relacionadas dentro de temas de desafios diários que era pra eu ter completado, sei lá, em 2019 e não deu, então cá estou passando a limpo pra ver se encontro ânimo em algum canto perdido em mim pra continuar a...