— Pra dizer a verdade ainda não sei mãe, cheguei aqui tem pouco tempo também.
Os dois olharam pra mim, eu não tinha nem memorizado minha própria desculpa e eles ali me cobrando, eu cada vez mais nervoso.
— Fala menino, quem é você?
Perguntou minha avó de novo.
— Ele é um pão. – Minha mãe disse isso pra mim, e eu até fiquei vermelho de vergonha.
— Ele estava comentando que chegou tem pouco tempo aqui, veio estudar na UEG e ainda tá procurando lugar para morar.
— Joca deixa o rapaz falar por ele mesmo bicho, e que camisa é essa toda fechada com chapéu junto?
Parecia piada, mas até meu moletom com capuz era estranho pra eles, não tinha ideia de como explicar tudo; raciocinando bem cara, não é normal sair em uma noite tranquila, e na outra estar, sei lá, cinquenta anos no passado, não dá, não se encaixava, e o pior era que tudo parecia real, cada toque, cada som, até o jeito que todo mundo falava.
— Garoto não presta atenção na minha filha não, Marília anda assistindo muita coisa que não deve na TV Tupi, mas diz logo de onde você veio, pra onde vai, quem é você?
— Eu … eu … eu sou Pedro, João Pedro, eu vim da Ilha, é … lá é do lado de Niterói.
— Meu senhor amado, vem pra cá tendo que pegar a barca e tudo ainda por cima.
— Barca?
— Com essa construção da Ponte Castelo Branco que nunca termina, é o único jeito né, e com a inflação como anda, deve ser uma fortuna.
— Sim … sim, por isso tô buscando algum lugar por aqui, mas como cheguei hoje ainda tô na busca, sacou?
— Saquei, o que?
— Desculpa, é se a senhora entendeu.
— Entender, não entendi muito bem não, mas se é amigo de meu filho, só é estranho as roupas, não é João Alberto?
— Deixa disso mãe, vai entender como está a moda lá do outro lado na Ilha?
— Olho viu meu filho, costume ou não, sempre é melhor manter a decência, o decoro.
— Mas …
Eu já tava super estressado de novo, parecia incrível como os comentários da minha avó eram iguais independente do tempo; eu já ia responder bem ela quando o Joaquim segurou meu braço, ele tinha um olhar meio cabisbaixo, algo que eu entendi bem o motivo; a pergunta pra mim era, como se falava disso naquele tempo, em pleno anos setenta.
— Mãe, a gente pode conversar rapidinho?
Perguntou meu tio.
— Claro filho.
— É que esse fim de semana, Heleninha e eu pensamos em ir ao cinema, o Joca vai também, depois passar num barzinho.
— Nem pensar João Alberto, esse sábado é meu aniversário e faço questão que você esteja presente, não aceito que meu próprio filho não vá pra minha festa.
— Não é isso mãe, é que …
Escutando toda aquela conversa de festa do meu tio com minha avó, eu tava começando a entender tudo, e comecei acreditar que tudo aquilo era verdade, que João Alberto que ia desaparecer eu já tinha certeza, agora só precisava saber quando ele exatamente ia sumir e principalmente como.
— Olha João Alberto, você pode até sair com essa sua patota, mas trate de aparecer lá em casa na hora combinada, às sete da noite eu já quero você lá … até esse mais estranho que é o Joaquim pode levar, mas é pra ir.
— Mãe!
— Você sabe que eu preferia só a Heleninha com você, uma menina tão doce, de família, você tinha que fazer como no meu tempo e cortejar ela, levar pra jantar, tirar pra dançar, conhecer os pais dela.
— Tá bom mãe, eu vejo o que faço, só para de falar assim dos meus amigos.
Enquanto os dois conversavam eu só ia juntando informações de longe, ficando cada vez mais assustado, o Joaquim, o cara que tinha me ajudado com os policiais, tentava me afastar da conversa, mas eu ia impedindo; já sabia quando eu estava, agora precisava saber mais informações. Sentei num banco próximo dos meus parentes, minha respiração ia se acalmando aos poucos, de acordo com que eu ia aceitando por bem ou mal aquela realidade.
— Joaquim?
Eu disse.
— Pode me chamar de Joca.
— Joca, foi mau a confusão toda, é que não dormi direito, na verdade não preguei o olho essa madrugada.
— Imagino companheiro, é difícil mesmo buscar lugar assim com pressa, onde tá deixando as malas? Quanto tem de dinheiro para um quarto?
— Ah tem isso também … é que me roubaram … e eu agora tô perdido com tudo isso, tá ligado?
— Ligado onde?
— Esquece.
— Esquece, o que?
— Aff, tá preciso te fazer umas perguntas, que data exatamente é hoje?
— Hoje é quarta-feira bicho, pergunta mais boba.
— Não, isso não, que data do ano é hoje?
— Ah companheiro, hoje é quarta-feira, dia onze de outubro de 1972.
— Tô fudido!
Era a confirmação que eu menos queria ouvir, toda esperança que ainda poderia estar no meio de uma confusão tinha sumido, eu tinha voltado cinquenta anos no passado, justamente para a data que meu tio tinha sumido, ou pelo menos quase a mesma data; eu comecei a suar frio de tão nervoso que fiquei, parecia que ia desmaiar de novo, puxei as mangas do casaco, nem dei muita bola pra cara que o Joca fez quando viu minha tatuagem no braço.
Agora que eu já tinha certeza absoluta de onde estava, que sabia bem o que ia acontecer dentro de alguns dias, agora precisava só saber bem como tudo aconteceria, descobrir o que nem minha mãe nem minha avó nunca souberam, respirei fundo repassando tudo o que eu sabia na minha mente; por um instinto de proteção busquei a mão do Joca, segurei firme, com carinho, e ele apertou de volta, mas logo soltou assustado olhando de um lado pro outro.
— Patota, junta aqui comigo, deu bode – O João meu tio tinha voltado pro meio da gente, minha avó já ia embora – vem cá gente que é papo sério.
Eu fui indo pra perto, na encolha, mas o Joaquim me mandou ficar no banco enquanto eles iam pra um outro lado do pátio da facul; precisava pensar rápido, peguei o telefone, mesmo já quase sem bateria e sem sinal nenhum, ainda ia me servir ali, deixei ele gravando e coloquei no bolso da mochila de pano do Joca, era minha chance de saber mais; a reunião deles lá foi curta, tipo uns dez minutos eu acho, depois meu tio e a menina com o penteado estranho, talvez fosse a tal Heleninha, saíram pras rampa das salas e o Joaquim veio na minha direção, ajeitando o cabelo grande que caia pela testa.
— Joca, o que rolou?
— Rolou onde?
— É … o que aconteceu? Isso quis dizer.
— Ah, você fala de uma maneira bem diferente, bicho.
— Foi mal.
— Não, tudo bem, é algo nosso, não posso contar nada … tenho que ir pra aula agora, mas e você, nem material tem?
— Putz, me levaram tudo.
— Que?
— Que quando me roubaram me levaram tudo, pode me emprestar uma folha e uma caneta, pode ser?
— Deixa só eu buscar aqui na mochila.
— Não, deixa que eu pego, relaxa.
Toquei o ombro dele, a forma como ele me olhava nesses momentos, uma mistura de atração, medo também eu acho, e o que eu começava sentir naqueles momentos ali com ele era diferente também; nem eu sei explicar muito bem, era puro, tá ligado? Diferente do que eu já tinha sentido e vivido no meu tempo; mas será que tem alguma maneira de explicar pra alguém que você tá ficando atraído por ele, mas que os costumes entre nós é diferente por que ele apesar de ser mais ou menos da minha idade também tinha cinquenta anos de diferença comigo. No meio dessa viagem na minha cabeça enquanto apoiava a mão nele com a outra peguei na mochila o celular e enrolei numa folha de caderno pra disfarçar.
— Eu tenho mesmo que ir agora bicho – Ele tava desconversando, começou a se afastar de mim, dava pra perceber – se quiser …
— Posso te esperar aqui … depois da minha aula também, claro, é que você deve conhecer melhor o bairro que eu.
— É … claro … mais tarde então te encontro, eu não tenho muito, mas devo ter uns cruzeiros sobrando, e posso te ajudar a conseguir um lugar ao menos pela primeira noite.
— Valeu mesmo pela ajuda.
— Não é nada, nos vemos mais tarde João Pedro.
— Jotta Pê, é como geral me chama.
— Jotta Pê!? – Ele riu – tudo bem Jotta Pê, mais tarde nos encontramos aqui.
A forma como ele me olhava, com aqueles olhos castanhos, tudo de estranho nele parecia sumir naquele momento; apoiei a mão na bochecha dele, num carinho leve, ele sorriu, discreto, e que sorriso que ele tinha, aquele rosto anguloso, com a marca da barba crescendo e os pelos no queixo numa barbicha encantadora embaixo da boca de lábios finos; da mesma maneira que ele retribuiu meu sorriso, com um afago de cumplicidade e atração, ele se afastou, abaixando minha mão e me olhando sério.
— Jotta Pê, eu não sei o que você pensa companheiro.
— Nada não, meu, eu só queria agradecer pela ajuda.
— Não foi nada bicho, depois da aula me espera aqui mesmo.
Ele saiu indo pra rampa, meu celular enrolado na folha de papel já tava vibrando apontando que não sobrava muito mais de bateria, eu tive que ser rápido, fui até o banheiro; por mais que a faculdade tivesse outro nome ali e fosse bem mais nova, os corredores e salas pelo menos seguiam no mesmo lugar, então sabia me mover ali. Entrei em uma das cabines e pus direto o vídeo, de dentro da mochila não via nada, mas conseguia escutar bem a conversa.
— Patota, deu bode, minha mãe quer fazer festa no dia da ação – Dizia meu tio João Alberto.
— E você vai furar tudo por causa disso, companheiro? – Perguntou a tal Helena.
— João a gente tá planejando essa expropriação já tem tempo – O Joca também tava metido nisso.
— Pelo contrário camaradas, sábado o banco fecha cedo, vamos de tarde, as armas já tão separadas na base revolucionária.
— Então agora seguimos em frente?
— Isso mesmo companheira, agarramos a maior quantia de dinheiro desse banco capitalista e distribuímos pras famílias dos grevistas e camaradas presos no último movimento; depois seguimos para festa, se chegam até nossas famílias ou descobrem algo, o aniversário vai ser nosso álibi.
— Bem pensado companheiro. – A Helena parecia contente, escutei um beijo.
— Agora temos que informar os outros companheiros, sempre por códigos, nada pode dar errado.
Depois disso o vídeo seguiu até a parte que eu consegui parar a gravação; agora sabia que meu tio sumiu, ou naquele tempo ia sumir ali, que aquilo tudo ia dar errado; eu precisava impedir eles de alguma maneira, e depois arranjar um jeito de voltar pro meu tempo. Fiquei sentado olhando as outras pessoas passando de um lado pro outro, fumando nas salas fechadas, aquilo sim era muito estranho pra mim, consegui um cigarro com uma das poucas meninas que estudavam ali, era mais forte que os da minha época, e com certeza mais forte que o vape que eu tava acostumado também.
Ali esperando as horas passarem até o final das aulas, tudo o que vinha na minha cabeça loera o sorriso e os olhos do Joaquim; como era possível se atrair por alguém de um mundo tão diferente do meu, e pior, que pelo que parecia nem se aceitar se aceitava; se pelo menos naquele momento eu tivesse alguma noção da confusão toda que eu tava me metendo.
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Viajante
Historical FictionJotta Pê é um jovem comum do Rio de Janeiro; sua família é marcada pelo desaparecimento de seu tio durante a ditadura militar. Um dia sem dar-se conta e sem saber como ele viaja no tempo tendo a chance de mudar o futuro. Em meio aos anos de chumbo n...