De uma hora para a outra deixei de estar bem, feliz, tranquilo por que tinha salvado a vida do meu tio e do Joaquim para estar confuso, com raiva, com dor; eu ainda era o mesmo, com as mesmas roupas, mas agora fora do carro, jogado no chão, no asfalto, via vários prédios modernos ao meu redor, gente na calçada passeando com o celular na mão, eu seguia tonto, como se tivesse bêbado, meu corpo se acostumando ao calor; na minha cabeça chegava uma mistura de pensamentos e emoções, levantei de vagar.
— Ô filha da puta! Sai do meio da rua, caralho!
Um cara gritou pra mim passando de moto, eu fui até a calçada, todo o barulho em volta da cidade começou a me deixar nervoso, fui caminhando meio perdido até o final daquela rua saindo na pista principal, atravessei uma passarela, ainda seguia meio zonzo, eu tinha me desacostumado a toda aquela vida corrida; apesar da falta que sentia de Joaquim, fui caminhando, tentando entender tudo que aconteceu, me abanava com as mãos, me assoprava, ainda estava com as roupas do passado que grudava na pele onde o suor escorria.
Cheguei na esquina onde tudo tinha acontecido, na minha mente estava tudo muito recente, mas ali tinham passado cinquenta anos, o bar pé de chinelo seguia ali, ainda mais decadente, uma coisa ou outra tinha mudado, no balcão um velho enchia uma estufa com salgados, era estranho saber que aquele velho era o mesmo garoto que tinha visto a pouquíssimo tempo; do outro lado da rua de frente pro bar tinha uma estrutura de um prédio, toda cheia de tapume, sem terminar, acho que em algum momento o tal banco tinha falido, percebi que o bar agora tinha um orelhão, disquei, à cobrar mesmo, o número da minha avó que cismava em manter o fixo.
— Alô, mãe?
— Que? – Um homem atendeu.
— Eu preciso falar com a minha mãe.
— Vai passar trote pra outro.
Fosse quem fosse tinha desligado na minha cara, tentei outras vezes, mas foi a toa, já não atendiam, fiquei puto com isso, na real, por que se já não tinha mais o Joaquim, eu nem sabia se tinha mesmo dado tudo certo, depois de cinquenta anos, queria pelo menos poder falar com minha família; antes de sair do bar lavei o rosto, tirando o sangue seco do rosto, que ainda estava inchado e fui caminhando devagar até meu prédio.
Lá pra variar seu Anselmo, com seus quase noventa anos não me reconhecia, e não quis deixar eu subir, já tava agoniado, com calor, estressado, cansado, ia andando sem direção tentando pôr a cabeça no lugar, e escutei por acaso a voz da minha mãe perto de mim, olhei pra trás e ela vinha com minha avó, ajudando ela com o andador enquanto minha avó reclamava de alguma coisa.
— Que bom que encontrei vocês, eu já estava preocupado!
Abracei elas, minha mãe ficou imóvel, me olhando surpreendida.
— O que é isso, ô menino?
— Mãe sou eu.
— Mãe?
Ela ficava me olhando com cara feia, abraçou a bolsa assustada, como se eu fosse roubar ela ou algo do tipo, só a vó me olhava com carinho.
— João Alberto!?
— Não mãe, o Beto tá no trabalho.
— O Beto tá vivo?
Eu perguntei na hora, era sinal de que tinha dado certo, que eu tinha salvado ele.
— Quem é você menino? O que você quer?
Eu comecei a ficar cismado com isso que minha mãe estava falando, não era possível que fosse só uma brincadeira, do jeito que minha mãe era, o normal era ela ficar louca, assustada com o jeito que tava minha cara; a única pessoa que parecia lembrar de mim ali era a avó, mas mesmo assim me confundia com meu tio como antes; eu tava bem mal já com aquilo tudo, quando um cara de uns setenta e tantos anos saiu de um uber vindo na minha direção.
— Jotta Pê?
Na moral, não sabia quem era aquele homem meio barrigudo, de cabelo branco, óculos grandes, o cara tava bem vestido, com roupa social, e por mais estranho que ele fosse pra mim, era o único ali que parecia me conhecer.
— Beto, você conhece esse garoto?
Ai que eu fiquei sem entender porra nenhuma mesmo, aquele era meu tio, velho, com muitos anos a mais, e minha mãe conhecia ele, mas não me conhecia.
— Sim, ele é … é um aluno meu, fez teatro também, tá fazendo graça com vocês … essas pegadinhas de TikTok.
— Beto?
Eu fui até ele sem acreditar no que estava vendo, ele me abraçou como se fossemos amigos de verdade.
— Te explico tudo, me segue – ele sussurrou no meu ouvido – Marília, leva a mamãe pra casa, eu já encontro vocês lá.
Elas se despediram de mim e eu fui caminhando com meu tio que ia mexendo no celular, um modelo meio antigo, eu ainda não tinha me acostumado com a presença dele.
— O que aconteceu?
— Eu não podia acreditar, eu demorei anos pra me convencer que o que eu tinha visto naquele carro não era real, e agora, depois de cinquenta anos você aparece como se não tivesse passado nem um dia sequer.
— Eu não tô entendendo porra nenhuma Beto, você tá aqui bem, tá vivo, ou seja, deu certo toda a loucura que eu fiz pra te salvar, mas porque minha mãe não me conhece?
— Deixa eu chamar um Uber, a gente vai pra casa e lá eu te explico tudo, é melhor assim.
— Tá, me dá um cigarro pelo menos, tô nervoso demais já.
— Parei de fumar em oitenta e sete, mas compro um pra você se quiser, agora vamos.
Fomos pra casa da minha avó, lá tudo era diferente, os cômodos eram os mesmos, mas a decoração era toda diferente, mais moderna, tinha várias fotos do meu tio espalhadas pelas paredes, ele em vários lugares diferentes, uma de um aniversário da minha avó com ele, minha mãe e umas crianças junto na mesa, mas nenhuma delas com meu pai, tinha até um homem meio cinquentão também nas fotos, acho que algum amigo dele, sei lá.
Fiquei no pátio com meu tio, já tava terminando o cigarro quando um carro parou no portão, o cara das fotos saiu com um monte de crianças correndo pra dentro da casa, achei que deviam ser netos dele já, eram três meninas, cada uma de uma idade diferente.
— Beto trouxe as meninas pra cá rapidinho enquanto a Mari não chega, pensei que a Dona Fátima estava aqui.
Disse o cara que parecia amigo do meu tio, mas que eu mesmo não conhecia.
— Tudo bem, eu disse pra ela levar a mamãe em casa, diz pra ela te encontrar aqui.
— Pode deixar, vou levar elas lá pra dentro … Quem é esse?
— É um aluno – Meu tio levantou devagar, a idade deixou ele mais lento, foi ido em direção ao homem – vou levar vocês pra sala, preciso pegar uma coisa – Ele voltou a olhar pra mim – você espera aqui, não me demoro.
Fiquei ali sozinho por uns minutos, e logo meu tio voltou com uma caixa velha de metal nos braços, se sentou na cadeira do meu lado, ainda ficava me olhando surpreso.
— Tá tio, me explica tudo.
— No dia da expropriação, você entrou no carro, o Joca ficou feliz e tudo, e de uma hora pra outra você foi ficando pálido, eu parei o carro e quando vimos você desapareceu, bem na nossa frente, ficamos meses sem entender o que tinha acontecido ali, eu mesmo demorei anos pra aceitar isso que eu vi, e foi aí com o passar das décadas que comecei a acreditar de verdade nas fotos que você me mostrou no celular – Meu tio riu – se você soubesse o susto que me deu quando vi o comercial desse celular uns anos atrás.
— Então eu voltei pro meu tempo, isso eu entendi, mas porque ninguém lembra de mim?
— Isso eu não sei te explicar direito, depois que você sumiu, antes que o celular acabasse a bateria completamente fiz questão de gravar cada foto, até fiz um esboço delas – Ele abriu a caixa, me mostrando umas folhas antigas com desenhos, os mesmos das fotos que tinha mostrado pra ele – mas o tempo foi passando e as fotos não aconteceram, minha irmã se casou sim depois de um tempo, me deu três sobrinhas lindas, mas não teve nenhum filho, e muito menos um João Pedro.
— Como assim?
— Depois de uns anos eu meio que aceitei como seria o futuro da Marília, e fiquei esperando seu nascimento João Pedro, a mamãe piorou da memória como você tinha me alertado, por sorte encontramos uma casa de repouso boa, minha irmã queria vender a casa, mas eu insisti em ficar com ela, sabia que era importante, que você se lembrava dela quando me conheceu, então ela tinha que tá aqui quando você nascesse, mas vieram as meninas, e você nunca chegou.
Não podia acreditar no que ele estava dizendo, meus olhos se encheram de lágrimas, uma confusão gigante tomava conta da minha cabeça.
— E o Joaquim, ele pelo menos tá bem também?
— Quanto a isso..
A expressão no rosto do meu tio parecia murchar, e eu olhando pra ele, olhando para aquela casa totalmente diferente do que eu conhecia, escutando o riso das meninas na sala, minha mente fervia, cheia de pensamentos vindos ao mesmo tempo.
— Não posso acreditar que cometi esse erro! – Disse quase gritando de raiva.
— Como assim?
— Agora eu entendi, meus pais se conheceram quase nos anos noventa, numa passeata pelos desaparecidos da ditadura, minha mãe disse que sempre ia junto da minha avó, ela conheceu meu pai lá, ele era envolvido com algum movimento que fazia essas passeatas; eles se conheceram por que você sumiu.
— João Pedro – Meu tio parecia assustado.
— Era uma missão suicida – Eu abaixei a cabeça enquanto lágrimas escorriam do meu rosto sem parar – eu salvei sua vida e apaguei minha existência, aqui eu não sou nada, nunca nasci, esse foi o preço de voltar, de mudar o passado.
Meu tio me abraçou, eu soluçava enquanto chorava, sem saber o que poderia fazer, depois de alguns minutos, o choro cessou, e a sensação era como de um amargo gigante que quase sufocava.
— Eu posso ter deixado de existir, pelo menos você e o Joaquim estão bem, liga pra ele Beto, eu preciso falar com ele também.
— Jotta Pê, o Joaquim … ele gostava muito de você, eu mesmo demorei muito pra entender e aceitar esse lado dele, o que tinha acontecido entre vocês, mas eu sempre tive certeza que era real o que ele sentia, só que ele não conseguiu lidar bem … não conseguiu superar quando você sumiu.
— Como assim, o que aconteceu com ele?
Meu tio me passou a caixa de metal, dentro peguei um objeto quadrado, com muitas marcas, mal fechado, com uma tela de vidro em cacos, demorei a perceber que era meu celular, ali também tinham várias fotos, fotos do Joaquim se tornando cada vez mais adulto, em todas as fotos notava seu rosto triste, uma atrás da outra, cada vez com mais idade, mas nunca velho, não como o Beto.
— O Joaquim, ele – Meu tio olhava algumas fotos comigo, enquanto falava com a voz embargada – ele passou quase uma década tentando ligar esse celular de novo, ele estava convencido em te trazer de volta, mas os anos passaram e essa ideia afundou ele … mesmo depois da ditadura, com a anistia, ele nunca ficava muito tempo em lugar nenhum, saia de noite e voltava depois de dias, machucado, bêbado, no início dos anos noventa eu estava cuidando da mamãe, quando ele me ligou … ele estava internado, doente.
— Não, não pode ser, ele não podia,
— João Pedro, ele esperou muitos anos, tentou ser forte, ele sabia que não podia mais estar com você, mas queria te ver uma ultima vez, ainda que fosse no seu nascimento, ele aguentou cada internação, cada infecção, a saúde dele era muito frágil, mas ele aguentou, só que em 2002.
— Eu não nasci.
— Ele sempre chamava por você nos últimos dias, eu queria que tivesse sido diferente, me desculpa.
Eu fiquei gelado, eu tinha salvado eles, me apaixonado por Joaquim e por causa disso tinha arruinado ele, destruído a história dos meus pais, acabado com minha existência, e pior nem sequer sabia como voltar de novo, pra tentar fazer melhor, ou pelo menos fazer eu nascer, não sabia se poderia voltar pro mesmo período; minha mãe abriu o portão e as meninas correram até ela gritando mãe, a mais velha devia ter pouco menos da minha idade, eu engoli aquilo em seco, toda aquela cena me deixava ainda pior.
Meu tio me olhava fundo nos olhos.
— Você pode tentar mudar as coisas de novo.
— Eu não sei como voltar.
— Vem, eu vou arrumar o quarto dos hospedes pra você – Meu tio levantou, e eu fui com ele ao quarto pequeno que um dia tinha sido dele – a caixa é sua, talvez alguma coisa aí possa te ajudar, eu fiz questão de guardar as fotos minhas e do Joca, sabia que se você voltasse ia querer ver tudo …
Meu tio continuou falando e falando, enquanto eu sentei na cama, segurando algumas das fotos deles nas diretas já, fotos deles em festas, ao longo dos anos, fechei os olhos imaginando o quão boa a vida deles tinha sido, pensei em cada coisa, como uma retrospectiva, daquele momento até os anos setenta, de quando conheci eles, visualizava cada cena enquanto a voz do meu tio se distanciava pela casa, me concentrava nas lembranças mesmo sem saber se poderia voltar pra lá um dia.
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Viajante
HistoryczneJotta Pê é um jovem comum do Rio de Janeiro; sua família é marcada pelo desaparecimento de seu tio durante a ditadura militar. Um dia sem dar-se conta e sem saber como ele viaja no tempo tendo a chance de mudar o futuro. Em meio aos anos de chumbo n...