Eu passei toda a noite acordado, minha cabeça ficava maquinando cada vez mais no que eu podia fazer, eu só pensava no que o infiltrado do Marcos André tinha dito, fiquei horas repassando cada frase, uma e outra vez, fiquei tipo um louco só pensando nisso enquanto as horas corriam, pra ter uma ideia nem os machucados latejando no meu corpo, puxando a pele pelo sangue seco tava me incomodando, tentava ficar me mexendo depois de mais de um dia na mesma posição enquanto ficava pensando em tudo que teria que fazer.
— Não adianta tentar, quanto mais se mexe mais se aperta.
O Joaquim chegou sério, mas sério que antes, tinha trocado de roupa, tava usando uma daquelas calças boca de sino e um blusão azul claro com uma camiseta por baixo; tava trazendo meu celular em uma mão, atrás dele vinha meu tio com uma camiseta colada e calça social, ainda me olhava cheio de ódio e desconfiança, e bem contrariado trazia uma caixa de metal com uma cruz vermelha. Os dois se sentaram na minha frente, Beto nem me olhava e o Joaquim ia limpando as feridas sem dizer uma palavra, os dois iam fumando enquanto cuidavam de mim; depois de fazer um trabalho bem meia boca João Alberto fechou a caixa e foi pro fundo da sala, meio que querendo manter distância de mim.
— João Pedro é sua última chance, agora é hora de explicar tudo.
Ele falava sem emoção na voz, como se eu fosse um qualquer.
— Eu disse tudo que podia, juro.
— Se você pedir eu quebro a cara dele de novo companheiro.
Meu tio disse no fundo com um olhar de ódio.
— Eu cuido disso camarada, pode me deixar um minuto com esse aqui a sós.
— Qualquer coisa é só gritar.
Ficamos só nós dois naquele galpão, ele me olhava fixo nos olhos, mordia o lábio de nervoso, mexia os dedos mas não soltava o celular da mão.
— Vamos João Pedro, me diz a verdade! Só isso que eu te peço, fala o que você sabe bicho.
— Tudo que eu disse é verdade, o máximo que posso te dizer é o que eu soube aqui.
— E o que seria isso?
— Já tem tudo certo pra pegarem vocês, eu acho que posso impedir, mas preciso que confie em mim.
— Confiar em você, como você pode pedir algo assim?
— Pensa comigo cara, se liga, por que eu faria tudo isso, ficaria tão próximo de você pra te trair?
— Não sei, queria confiar em você, mas já não posso.
— Puta que pariu … eu te disse que sou gay.
— Que, isso é algum código Yank?
— Não … o que eu queria dizer é que te disse que gosto de homens, tivemos toda uma noite de amor.
— Não entendo por que você fez isso, se é entendido escondido ou sabe lá o que, mas isso não vem ao caso aqui.
— É justamente isso que eu quero te dizer, vê se saca, quer dizer, se entende; olha bem pra mim, sou cheio de tatuagem cara, orelha furada, piercing, sou gay, quer dizer, entendido … o ponto é de onde eu venho não pode servir no exército com nada disso.
— Tem um pouco de lógica – A expressão dele começou a mudar, era mais parecido com o Joaquim de sempre, mas foi só por alguns instantes – Mas isso não explica tudo o que você sabe do Beto, como ficou sabendo disso tudo, e principalmente o que é essa máquina que você levou pra me espiar.
— Eu já tentei explicar, de verdade, mas não é fácil de entender, mas juro que é verdade.
— Já te disse que quero a verdade Jotta Pê.
— Eu sei que você ainda sente algo por mim, é recíproco, tenho certeza, você é o único aqui que me chama assim.
— Chega desse assunto – Ele tremia a voz, eu sabia que tinha algo de sentimento ali – eu e outra camarada ficamos vendo essa máquina por horas, quando você disse que era a bateria conseguimos meter uns fios e ficou aparecendo um círculo verde que ia aumentando; isso tem algum tipo de explosivo? Você queria matar a gente?
— Não, eu te juro, isso é um carregador, o que você conseguiu foi carregar a bateria dele.
— Explica melhor isso … é bom ser verdade isso bicho, se não o companheiro Beto vem e dessa vez não vai ser eu nem o Zé que vai segurar ele.
— Zé?
— Explica que merda é essa.
— Aperta esse botãozinho do lado, mas me explica quem é Zé?
— Esse não é o assunto, me diz se eu aperto isso, o que acontece?
— É pra ligar, assim posso te explicar o que isso é; e aquele número que apareceu na tela, quer dizer, no círculo.
— Isso não é do seu interesse; fazemos assim, deixo ele aqui na cadeira, solto uma mão e você liga isso, se explodir você morre, se tentar fazer algo eu disparo uma bala na tua cabeça.
— Só confia em mim Joaquim, por favor.
— É sua única chance.
Ele soltou uma das minhas mãos, a outra seguia amarrada nas minhas costas, ver ele com toda aquela desconfiança era terrível, ele se afastou e eu mais rápido possível liguei o celular, 20% de bateria, era a chance que eu tinha, levantei a mão mostrando a tela do celular pra ele que foi se aproximando curioso.
— Agora desembucha, o que isso faz?
— Lembra que eu te disse que não sou daqui?
— Você já disse muita coisa sobre isso bicho, preciso que seja mais específico.
— Eu disse que não sou desse tempo, olha a data que aparece na tela, dois dias depois de hoje, só que de 2022, olha bem – Ele olhou e ficou de boca aberta, agora eu tinha algo que provasse o que eu dizia.
— Muito bem companheiro, isso é invenção de algum Yank imperialista?
— Não, pera Joaquim, eu consigo te provar que tô falando a verdade, presta atenção – Abri a galeria e fui mostrando as fotos que eu tinha – olha aqui, esse sou eu na festa de aniversário da minha avó, olha bem.
Os olhos dele estavam arregalados, ele ficava sem entender, meio bobo, e tudo que eu queria era que fosse mais fácil de explicar, coloquei a mão no ombro dele, e pude ver naquele momento um olhar de carinho, o primeiro desde que tinha me prendido naquela sala.
— Como isso pode ser verdade? Essa sua avó é a mãe do João, mas você não conhecia ninguém aqui.
— Eu sei que é muito louco, mas pensa bem, por isso eu e ele somos tão parecidos, por isso no início eu não entendia nada de como vocês falavam, não reconhecia as ruas.
— Se isso é verdade…
— Joaquim, eu juro que é verdade, de onde eu vim minha avó nunca superou meu tio … o João Alberto ter desaparecido, e do nada eu vim parar aqui, e sei lá, minha missão aqui acho que foi vir pra salvar ele, mas aí percebi que não era só ele que ia sumir, e depois eu me envolvi com você, eu me apaixonei.
Ele pôs a mão no meu rosto bem de leve e foi se aproximando, me deu um beijo, apesar da dor pela boca machucada, dos hematomas, sentir os lábios dele com os meus era como voar bem alto, ir ao céu e voltar; ele sorria enquanto me beijava, os olhos cheios de lágrimas, por mim.
— Ei companheiro, tudo bem aí?
Beto, meu tio, perguntou da porta, segurava um cigarro pela metade, Joaquim se afastou rápido, eu tinha certeza que meu tio tinha visto nosso beijo, mas apesar da violência que teve comigo, não disse nada sobre isso, parece que levou tudo numa boa, eu não sabia se ele sabia que o Joaquim era gay, mas pelo visto isso era o menos importante pra ele. Quando se juntou a nós dois, eu mostrei pra ele as fotos também, e expliquei tudo o que eu sabia, o que eu tinha visto, o que descobri nos últimos dias, e fomos bolando um plano, se tudo desse certo o dia seguinte ia ser diferente, agora eu tinha eles como aliados, ao fim as coisas podiam dar certo.
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Viajante
Historical FictionJotta Pê é um jovem comum do Rio de Janeiro; sua família é marcada pelo desaparecimento de seu tio durante a ditadura militar. Um dia sem dar-se conta e sem saber como ele viaja no tempo tendo a chance de mudar o futuro. Em meio aos anos de chumbo n...