Tudo tinha dado uma virada de trezentos e sessenta graus, eu tava super assustado, molhado, tremendo mesmo, não de frio, mas de medo, meus braços doíam amarrados atrás daquela cadeira desconfortável, meus pés também já sangravam de tão machucados; as duas pessoas que estavam na minha frente se olhavam como pensando o que eles iam fazer comigo; engoli em seco quando a garota se aproximou de mim, a arma apontada na minha cara, foi se abaixando me olhando olho no olho, a vontade que eu tinha era gritar, real, mas nem isso eu podia.
— Vamos companheiro, eu não quero problemas, você também não, então abre o bico aí ô vida boa, o que você sabe? O que tá armando?
Eu só tremia de medo.
— Acho que ele tem que ficar um pouco mais aí, pra poder amaciar, deixa ele de molho que já solta a matraca.
O cara disse com uma voz grossa; os dois se afastaram por uma portinha de metal, e eu fiquei lá sozinho, não sei quanto tempo, depois de umas horas, fui me acostumando, se é que podia se chamar de acostumar aquela maneira humilhante que eu estava, na real acho que tava tão cansado que já não sentia mais tanta dor, só mesmo o desconforto de não poder me mexer.
Ali sem aquelas duas figuras intimidantes pude ver melhor como era o lugar onde eu estava, tinha um teto alto de metal, várias janelas enferrujadas tapadas com madeira mesmo nas paredes cheias de mancha de mofo, tinha uma escada perto da portinha por onde eles saíram, dava para uma espécie de galeria cheia de máquinas grandes empoeiradas que eu não fazia ideia pra que eram; ouvi alguns barulhos, acho que devia ter ratos ali, algo que eu tenho pavor.
Consegui ouvir alguns cochicho vindos da porta, alguma conversa, mas era tão baixo que eu quase não conseguia entender bem, a porta perto da escada se abriu e entraram meu tio e o Joaquim; ver ele ali, a cara de raiva, desconfiança, frustração, aquilo acabou comigo, a maneira que ele me olhava, tudo me deixou no chão, tipo na merda mesmo, meu tio também não tava com a cara boa, nisso ele lembrava muito minha mãe quando ficava puta comigo; os dois vinham devagar até mim, com armas na mão, traziam também minhas roupas, as do meu tempo e meu celular descarregado.
— Muito bem vida mansa, já estamos sabendo de tudo – Meu tio dizia sério – quero que você explique tudo.
— E pode falar também que invenção é essa, pra que serve essa máquina que estava no seu bolso, e essa roupa, como fui tonto, vocês acham mesmo que os jovens se vestem dessa maneira estranha?
Joaquim jogou as roupas sobre mim, eu comecei a chorar, não sou do tipo fraquinho, desses que choram por qualquer coisa, mas ali já tava perdendo toda a esperança; meu tio engatilhou a pistola me deixando gelado de medo, a vontade que eu tinha era de ficar encolhido, tipo posição fetal até aquilo tudo acabar.
— Anda o seu merda, pode ir engolindo o choro e contando tudo.
— Cara … eu não sei de nada do plano … só sei como termina, eu juro, por favor ti … João, deixa eu sair daqui.
Meu tio respirou fundo, e o Joaquim apontou o celular na minha cara.
— Chega de besteira, já demos voltas demais, diz pra que serve essa máquina? Escutei ela fazendo barulho, o que é isso, algum gravador?
— Não, é um celular, ou melhor, um telefone, não tem nada com que gravar com um celular descarregado, eu juro, Joaquim você confia em mim, eu sei que confia, e eu gosto de você, acredita no que eu tô dizendo.
O soco veio forte no meu rosto, o gosto de sangue direto na minha boca, não fazia ideia que meu tio tinha tanta força.
— Tá achando que sou tonto, isso de telefone é algum código ou o que? Onde já se viu telefone sem fio e sem nada, é algum aparelho de comunicação? Diz quem são seus informantes bicho!
— Vocês não vão entender se eu disser como eu sei, mas eu não tenho nenhum informante, eu juro.
— Já chega companheiro, esse aí tem que ficar mais tempo de molho.
— Eu ainda vou tirar mais informação dele – Joaquim acendeu um cigarro enquanto meu tio saia da sala – Você me fez confiar em você bicho, me iludiu como um idiota, é melhor pro teu bem você me contar tudo.
— Eu já tentei, mas você não ia acreditar, nem eu entendo direito como tudo isso aconteceu.
— Chega – Ele gritou, acho que ali foi a primeira vez que ele gritou com raiva de mim – você fica dando voltas o tempo todo, eu tentei confiar em você, tentei de verdade bicho, mesmo com todas as coisas que você não sabia explicar, de como apareceu do nada na faculdade, te ajudei, tentei descobrir as coisas, perguntar, mas você tá sempre com esse papo todo onze horas, eu me abri de verdade com você, e você me traiu.
— Caralho, não foi assim, eu te conto tudo, juro que digo tudo que sei, mas vocês não podem seguir com isso, eu tô tentando ajudar – As lágrimas caiam pelo meu rosto, eu soluçava enquanto falava, e o cara que eu estava afim, que eu tentava ajudar parecia já nem se importar – eu te disse Joaquim, eu não sou daqui, eu vim do futuro, de 2022, isso que você achou é um celular.
— Um o que?
— Um telefone, serve pra falar, sem fio, por sinal … sinal que nem … sei lá, tipo igual a televisão, rádio, eu não sei como vim parar aqui, mas o João Alberto é meu tio, ou era pra ser … de onde eu vim ele … vocês dois sumiram depois desse assalto; quando cheguei e vi ele aqui não sei o que me deu, eu meio que entendi que tinha que ajudar ele, só que aí eu conheci você, você me ajudou e eu fui me apaixonando, nunca fui assim, sempre saia com um e com outro, mas você foi diferente, e isso fudeu com tudo, não era pra tudo ter ficado assim.
— Já chega Jotta Pê, se é que esse é seu nome de verdade, toda essa história que você inventa é pra convencer a quem? Eu só te pedi pra ser verdadeiro, e nem isso bicho, acho melhor deixar você aqui mesmo, depois de alguns dias você desembucha.
— Joaquim, por favor, eu só quero te ajudar, eu… eu te amo cara.
— Chega disso, você me usou assim pra que? Pra rir de mim? Pra fazer piada com os outros sobre o “entendido” subversivo? Eu tô cansado de você, Adeus João Pedro.
Ele saiu e eu fiquei sozinha lá, com a noite chegando, com frio, fome, e sem poder fazer nada, sentia uma impotência gigante, uma decepção terrível pela forma que o Joaquim tinha me tratado; na moral, não sei explicar como tudo chegou até ali, a loucura que eu fiz de me apaixonar tão rápido por alguém tão diferente de mim. Já bem de noite, eu lá tremendo, com medo, ouvindo os ratos passando pelo meio daquele galpão quando entrou o outro cara que tinha me ameaçado antes, ele parecia mais tranquilo, tava com uma lanterna de metal, apontou a luz na minha cara e ficou me encarando.
— Agora é minha vez de interrogar você – Ele riu – eu já entendi qual é a sua, e tá bem que não fale nada sobre seus informantes, mas dá pra ver que é gente importante, aquele teu aparelhinho tá deixando todo mundo com a pulga atrás da orelha.
— Eu não sei de nada, juro.
Ele riu de novo, e veio mais pra perto de mim.
— Te digo uma palavra e você me diz se entende – Ele abaixou a bandana que tava a cara dele – você é da boate?
— Sim … sim.
— Eu sabia – Ele sorriu, tirou um maço de cigarro do bolso e me deu um trago rindo – não sei o que você teve que fazer, mas agarrou mesmo o invertido, e como eles deixaram te infiltrar com essas tatuagens, esse cabelo estranho, parece um verdadeiro hippie; preciso que me conte depois sobre aquela máquina, não sabia que o DOPS tava com tanta grana pra essas coisas … deve ser Yank, com certeza.
— Sim – Eu não estava entendendo muito bem, mas achei que ali talvez fosse minha chance, um fio que fosse de esperança de pelo menos sair vivo – veio dos Estados Unidos, de um Steve Jobs.
— Nunca ouvi falar desse General Steve Jobs, mas esses Yankees sabem mesmo como fazer as coisas; eu sei que você tá aí com medo e tal, mas esses subversivos de merda já estão no papo, tá tudo sob controle, esse assalto que estão planejando já tá marcado pra falhar, e nós dois militares vamos ser os heróis mais uma vez.
Eu fiquei gelado, estava sem acreditar, agora as coisas faziam sentido, agora já sabia porque meu tio ia sumir, mas precisava ajudar, sair daquela situação de merda e poder salvar eles; eu ali preso, amarrado, sem saber onde eu tava, mas pelo menos com alguma esperança de sair vivo e conseguir mudar as coisas.
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Viajante
Historical FictionJotta Pê é um jovem comum do Rio de Janeiro; sua família é marcada pelo desaparecimento de seu tio durante a ditadura militar. Um dia sem dar-se conta e sem saber como ele viaja no tempo tendo a chance de mudar o futuro. Em meio aos anos de chumbo n...